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João Távora

Impressões musicais (2)


The Lamb Lies Down On Broadway – Duplo “concept” album dos Genesis de 1974. Peter Gabriel, Steve Hackett, Tony Banks, Mike Rutherford e Phil Collins.

Este é sem dúvida um dos mais marcantes discos da minha vida. Não assisti ao célebre concerto no pavilhão dramático de Cascais. Em Maio de 1975 eu era uma criança. Quando pela primeira vez contactei com esta obra-prima, foi no Verão de 1976 em casa de amigos. Dava os meus primeiros passos de adolescente, o meu pai fora "saneado" da Torre do Tombo, e o PREC entrara-nos violentamente pela casa e vida adentro. O nosso gira-discos já não tinha agulha, a televisão avariara há mais de um ano e muitas outras "coisas" estiveram em perigo de “avariar” definitivamente.

Estranhos e loucos dias esses, em que o mundo dos meus pais desabava para sempre, e em que a minha ligação à música se cingia à transmitida pela telefonia. A toda a hora esta papagueava Fernando dos Abba, a Bohemian Rhapsody dos Queen, Fly, Robin, Fly, dos Silver Convention entre tantos outros super hits. Como alternativa, havia demasiada música de intervenção, e podia-se ouvir boa música, discos do princípio ao fim no programa “Dois Pontos” já não sei de qual emissora. Numa frequência FM ouvíamos as comunicações do COPCON, sempre actuante no “olho” da revolução, mas essa seria outra história.
Os tempos continuavam estranhos e uma estranha rebeldia apoderara-se da minha existência. Neste fabuloso álbum duplo dos Génesis, Peter Gabriel vestia a pele de Rael, um jovem e ingénuo "punk" Porto-Riquenho que inadvertidamente “aterra” na Broadway. Então começa uma louca aventura em busca de John (seu alter ego?). Cada música é um episódio mais ou menos surrealista, cada faixa mais fantástica e com ritmos mais endiabrados, com crescentes e sofisticadas melodias que narram uma série de experiências existenciais de Rael: do erotismo (Counting out time), à violência gratuita (Back in New York City), paisagens psicadélicas (Broadway Melody of 1974 ou The Carpet Crawlers), ou proféticas (The Chamber of 32 Doors) aos monstros míticos (The Lamia). Rael, de aventura em aventura caminha para o abismo final, uns agitados “rápidos” (In the Rapids) de onde resgata o (afinal) seu irmão John, que, surpresa das surpresas, não é mais do que o próprio, no outro lado do espelho. Termina a história com o tema It: "(…) It is Rael. it is Rael, Cos its only knock and knowall, but I like it". Um delírio.

Nessa época embrenhei-me e refugiei-me naquela música, com aquela delirante história, e com a voz única e inconfundível de Peter Gabriel. É que, num belo dia do início de Verão em 1976, na feira da ladra descobri uma bobine de fita magnética que servia num grande e velhíssimo gravador existente lá de casa. Nessa bobine (a única que eu tinha) com uns cabos emprestados, em casa de uns amigos consegui fazer uma “gravação directa” do álbum in-tei-ri-nho!
Durante esse Verão e meses seguintes, ouvi e explorei incansavelmente todo o disco. A voz de Peter Gabriel tornou-se para mim uma espécie de "fetiche". Uma sonoridade onde identifico muito do que a vida tem de bom e de lugar seguro para se estar. Sempre perdoei todos os “desvios artísticos” e “devaneios ideológicos” deste cantor e compositor que continuo a admirar. Nunca perdoei os Génesis não terem terminado com a sua saída.

No passado mês de Maio assisti pelo segundo ano consecutivo à performance dos “Musical Box” que repõe em palco todo o lendário espectáculo que é o The Lamb Lies Down On Broadway ao vivo, com uma minúcia e arte admiráveis. Tratando-se esta de uma música tão complexa quanto “cerebral”, a sua interpretação por outros protagonistas é bastante plausível, bastando para tal que estes sejam musical e tecnicamente evoluídos. Nesse espectáculo na Aula Magna confirmei e esclareci muitas das minhas fantasias no que refere ao mítico espectáculo do Dramático de Cascais que nunca assisti. Afinal com a vantagem de não estar pedradíssimo e esmagado com as pernas para o ar no meio de 10 mil loucos eufóricos que não sabiam ao que iam. E o meu prazer e consolação foram enormes, numa poltrona da Aula Magna.
E sempre em coro com os restantes fanáticos, apaixonados como eu, revisitei sentimentos e sonhos destas músicas já antigas. Trauteámos sílaba após sílaba, acorde após acorde, todos os noventa minutos desta louca obra-prima dos Genesis de Peter Gabriel: The Lamb Lies Down on Broadway.

Saudades do "nosso" Maestro

Estou chocado. Morreu hoje aos 79 anos o Maestro Jorge Machado de quem eu era amigo e admirador. Tocava piano no hotel Tivoli Lisboa há quase quarenta anos, coisa que considerava “um trabalho prazenteiro”. Quase sempre notava-se bem o prazer com que o que fazia.
Às vezes, no Terraço, tocava para mim Grappelli, Lloyd Webber e Bach. Depois, conversávamos muito sobre música. Sobre “o apreciar” desta divina arte. Sobre a vida dos músicos, sobre o seu teatro musicado e os seus musicais. Eu sempre lhe ia dizendo, não sem uma ponta de inveja, que nós, "os melómanos", éramos uns privilegiados, pois gozávamos com infinito prazer do valoroso trabalho dos grandes músicos, quase sempre “da poltrona” e com tão poucos incómodos. Ele ria-se. E agradecia sempre (não sei bem o quê).
Eu é que lhe ficarei para sempre grato por me ter tocado tanto com a sua simpatia e música no meu coração.

Vaidades, fardas e “etiqueta”

Sou uma pessoa relativamente vaidosa, das que preferem ter um "curto" guarda-roupa mas com um bom corte, de preferência clássico. Coincide aliás o meu gosto com as exigências “protocolares” da minha profissão. Constitui o meu habitual trajar um bom fato escuro, com uma camisa discreta e uma gravata… enfim, essa bem ao "meu gosto".
O episódio aconteceu há poucos anos, quando eu, com um meu belo fato azul-escuro, entrei no comboio em São João, a caminho do Cais do Sodré. Constatando que não havia lugares sentados, entrei pelo corredor do comboio. Quando me aproximei de uma cadeira para me “segurar”, logo uma simpática velhinha se agitou, prontamente retirando da sua bolsa o bilhete para eu obliterar devidamente.

Em 1898, sobre a arquitectura em Lisboa


O ilustre pintor (Columbano) vive numa velha habitação, para as bandas da Rua da Alegria. É um casarão amarelo, metido dentro de um pátio, e que, entre os horrorosos prédios de Lisboa, conserva ainda carácter. Outrora as casas eram quase como pessoas: havia-as com feitios de birra, sardentas e insolentes… Hoje o ideal é este: o prédio, a uniformidade, o horror…

Raul Brandão – Retirado de Uma visita a Columbano 1898
In Paisagem com Figuras – inéditos Vol. II, Âmbar 2006 – Organização de Vasco Rosa

Jornais em tempo de mudança (III)

Na minha opinião de leitor observador comum, a actual crise da imprensa “tradicional” e “de referência”, tão debatida, dá-se, não tanto ao nível da sua forma e conteúdo, mas muito mais por causa do caos reinante na definição e distribuição dos conteúdos pelos suportes “tecnológicos”. Mas irei opinar sobre as duas faces da mesma moeda, começando pelos conteúdos.
No que diz respeito aos chamados jornais de referência, concordo com Fernanda Câncio (!), do DN, que numa crónica recente recusou a desesperada procura do público como saída da “crise”. Também me parece que não vale a pena tentar conquistar um público que não gosta de ler, disputando-o aos meios de comunicação audiovisual. Ambicionar a conquista de todos os nichos de mercado revelar-se-á um erro, por serem, em geral, inconciliáveis e de distintas exigências. Mas essa tentação persiste muitas vezes em manchetes duvidosas dos nossos jornais de referência. A primeira página e as manchetes serão sempre um factor crítico na afirmação de um qualquer jornal.

Concordo também com Pedro Correia, que defende uma alteração drástica do estilo de escrita: “não há mais lugar para a prosa fria e distante. Há que estabelecer efectivos laços de cumplicidade com o leitor. Num estilo personalizado, empático, afectivo”. Considero utópico e irritantemente anódino o jornalista “pretensamente” ausente. Porque não assumir-se enquadrado no terreno da sua pesquisa?
Além disso, e em atenção a um mercado tão pequeno como o nosso, seria bom que as linhas editoriais dos nossos jornais se definissem politicamente, como é comum nas mais antigas democracias ocidentais. Dá-me ideia que estão todos a escrever para o mesmo espectro social e ideológico, o enorme “Centrão”. E como, na verdade, não há “imparcialidade” ou independência totais, essa opção é equívoca.
Pessoalmente, gostava de ter um diário claramente posicionado no “centro-direita”, onde encontraria claramente as minhas referências ideológicas, e outro que fosse definitivamente de “centro-esquerda”. Uma vez por outra, até compraria os dois.

Ainda no que se refere aos conteúdos, apesar de ser reconhecida uma constante perda de público tradicional, é visível que nada se faz pelo “público do futuro”: as crianças. Nenhum dos jornais diários ou semanários (à excepção dos encartes de fim de semana do Diário de Notícias e do Público) reserva um espaço, pequeno que seja, para os mais pequenos, com BD, jogos e animação própria para a faixa etária dos 6 aos 12 anos. É um erro fatal, quando sabemos de uma grave contingência dos leitores e do público em geral: eles envelhecem e morrem! É preciso investir sempre nos futuros públicos. É verdade para o turismo, é verdade para a indústria automóvel e é verdade para os jornais. Pela parte que me toca, que bom destino seria dado a um pequeno destacável infanto-juvenil. Mas pronto, à falta de alternativa, os miúdos viram-se exclusivamente para a Internet. E aqui é que, quanto a mim, se gera o caos e surge a crise.

Jornais em tempo de mudança (IV)

Abordemos agora a questão, para mim verdadeiramente crítica, que é a dos “suportes” dos conteúdos. Dizem por aí que os jornais perdem leitores todos os dias e que se perdeu o gosto pela leitura, com o império da imagem e dos conteúdos “imediatistas” da TV e seus sucedâneos. Será verdade? Só em parte.
Ponha-se outra questão: ouve-se hoje menos música que ontem? Todas as associações da indústria fonográfica se lamentam e nos alertam para a crise que, ano após ano, se agrava na venda de discos e filmes em suporte tradicional, os chamados CDs e DVDs. No entanto, alguém duvida que alguma vez se tenha ouvido e produzido mais música do que hoje? Agora, todos os miúdos do liceu “sacam” a música na Internet de algum “e mule” da vida (sistema “on line” de partilha de ficheiros chamado “pear-to-pear”). O tráfico de ficheiros de música e cinema impera na Internet, sem controlo. Ouve-se menos música hoje do que ontem? Não. Ouve-se muito mais. É ver nos transportes públicos a vulgarização dos acessíveis aparelhos MP3. “Eu tenho mais de 30 gigas de música no meu PC” é conversa vulgar entre jovens e menos jovens nos dias que passam. Quanta dessa música foi adquirida legalmente?
Com os jornais passa-se algo semelhante. Não tenho dúvida de que nunca se leu tanto como hoje em dia. Com os conteúdos de livre acesso, dos jornais desportivos aos sites corporativos ou de comércio, passando pelos jornais “on line”, nunca houve tamanha democratização da leitura. Que não haja dúvidas: lê-se hoje mais do que antigamente. Na empresa em que trabalho, há actualmente cerca de 300 terminais de computadores com ligação à Internet, logo, com acesso gratuito a toda uma parafernália de conteúdos escritos. Isto não acontecia há dez anos, ou há menos tempo ainda. A democratização da Internet trouxe o caos à distribuição, logo, trouxe problemas na rentabilização dos mais variados conteúdos, entre os quais, parece-me, as notícias dos jornais.
No meu caso, todos os dias recebo na minha caixa de Correio Electrónico links ou transcrições de artigos do DN, do Público ou do Expresso. De forma espontânea formaram-se redes de partilha de conteúdos diversos. Recebo todos os dias diversos textos, partilhados por amigos meus, que conhecem os meus gostos e maneira de pensar. Sim, recebo vários artigos de opinião do DN, “recortados” por essas redes anónimas que alteram nos dias que passam as regras do jogo. Mais, repare-se na divulgação e partilha de conteúdos noticiosos ou de opinião através da blogosfera. Afinal, ainda vamos admitir que hoje se lêem mais “jornais” do que há dez anos, só que de forma diferente.

Que não haja dúvidas: muitos consumidores continuarão a comprar jornais na banca, a sujar os dedos com gosto, numa qualquer esplanada de Lisboa, de Paris ou do Cairo. Mas parece-me que, inevitavelmente, seremos cada vez menos.
O esforço pertence, uma vez mais, aos empresários, aos gestores, a alguém que ponha ordem neste caos, discipline e rentabilize a circulação dos conteúdos dos seus jornais pela Internet. É aí que se encontra agora grande parte do mercado. É aí que encontramos os leitores que faltam diariamente nas bancas tradicionais. E é aí que se encontram talvez muitos mais novos e inquantificáveis públicos.

A história em 93 anos

Elisa Hendle, a Condessa de Edla (na foto), foi a segunda mulher de D. Fernando II, com quem este nosso ilustradíssimo monarca casou após a morte de D. Maria II.
Elisa Hendle era cantora de ópera e o seu casamento com o viúvo D. Fernando Saxe-Coburgo-Gotha na altura foi polémico, já que a Senhora Condessa fora anteriormente casada com um músico do Porto de quem tinha já dois filhos. Nada de especial se afere do que até aqui descrevi.
O que me causa verdadeira admiração é a longevidade desta senhora, que nasce em 1836 com “um pé” no antigo regime e morre no Estoril em 1929 ao tempo de Salazar, em plena república.
Não sei se a Condessa de Edla era atenta aos factos da sua época, tão pouco sei se acompanhava as descobertas científicas, as experiências políticas na Europa ou revoluções tecnológicas. Mas dá-me a sensação que estes 93 anos de vida, na época em que aconteceram, valem quase a travessia da História.
É que D. Elisa foi contemporânea da Rainha Vitória de Inglaterra, de Schopenhauer, de Balzac, de Garrett e de Paganini. Nasceu antes da iluminação a gás e morreu no advento da telefonia. Repare-se que, à época do seu nascimento, as vias de comunicação em Portugal quase se reduziam à rede herdada do império romano - em Portugal, em 1850, para se fazer a viagem de Lisboa ao Porto em menos que uma semana, o meio de transporte possível era por via marítima. A Condessa de Edla nasceu no tempo da Diligência e teve oportunidade de viajar para o Estoril em comboio eléctrico (nosso contemporâneo).
Por tudo isto, parece-me que esta senhora viveu uma eternidade.

Impressões musicais (1)

São muitas vezes bem generosas as surpreendentes “ofertas” que se recebem com os "lados B” de alguns discos. Como ainda criança conheci o espantoso Concerto de Varsóvia de Addinsell, que vinha incluído no álbum do Concerto para Piano de Rachmaninov, tenho ficado positivamente deliciado com uma peça de Ravel La Valse, Poème chorégraphic que vinha escondido no disco do Bolero (1), do mesmo autor. E já agora, do mesmo álbum, é tambem uma viagem ao paraíso ouvir Pavane pour une infante défunte. Com o tempo, quase sempre me apaixono pelos "lados B".

(1) Bolero - Ravel - Orquestra de Paris conduzida por Daniel Barenboim - Deutsche Grammophon 1982

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