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João Távora

Mais um soco na barriga

 

À falta de outros desafios e por acumulação de desaires, penso que não é de menosprezar o peso da precipitação do retorno português de África por mais que estejamos habituados e que fosse expectável.

Estremunhados duma fugaz alucinação consumista e despertos para a cruel e ancestral pobreza a que estamos fadados, há algum tempo que os portugueses se vêm afundando numa crescente perda de auto-estima e descrença. Somos hoje uma triste tribo que se desagrega, subjugada por um discurso desmotivador, sem chama ou transcendência. Triste sina a deste povo sem causa ou bandeira.

Irrelevâncias

 

As sondagens da Universidade Católica hoje divulgadas constituem uma angustiante "não notícia": apesar do partido socialista em queda ostentam ainda uma galhofeira maioria de esquerda, com a abstenção de mais de metade inquiridos, factor que as tornam manifestamente inconclusivas.

Enquanto o poder é tratado como uma batata quente que ninguém quer disputar, tragicamente o que nos sobra para os próximos meses, além do desemprego, do estio e da paria, é uma dramatização da discussão em torno das eleições presidenciais, uma espécie de silly season política, um fogo fátuo para alimentar intrigas e parangonas nos jornais, manter entretidos os gabinetes e suas clientelas, enquanto o país se afunda na pobreza e na desmotivação generalizada.

Chamemos os bois pelos seus nomes: é comprovadamente irrelevante para o sucesso do nosso desgraçado país o nome do próximo inquilino de Belém.

Ossos do meu ofício

 

Um colégio infantil é um tão estranho quanto fascinante microcosmos. Aquele de que vos falo, foi por onde passaram todos as nossas crianças desde há dezanove anos para cá, quando abriu lá em S. João, e é hoje coabitado em harmonia pelas criancinhas do berçário à quarta classe, e por uma tropa fandanga de mulherio que, com apreciável competência, preenche quase em exclusivo todos os quadros profissionais da escola - auxiliares, administrativas, educadoras, professoras, psicólogas (as únicas com direito a titulo de doutoras) e a directora.

Só num mundo caricato assim se justifica a convocação dos encarregados de educação hoje para às 15,00hs, não para verem o jogo Portugal vs. Brasil, mas para a festa que a classe finalista do primeiro ciclo (de que a minha filhota pequena faz parte) vem preparando com esmero. Enfim, imagine-se a dificuldade que irão ter os pais diligentes a justificarem no emprego a dispensa à hora da bola, por uma festa no colégio do seu petiz. Eu lá estarei conformado naquelas cadeiras baixinhas, com os ouvidos... divididos.

Tempos de mudança, tudo na mesma

Ainda pensámos aliviar o espaço, mas decidimos que vamos manter o velhinho leitor de CDs na estante do escritório lá de casa. É aí que os miúdos quando pequenos, empoleirados na cadeira, tocam, tiram mudam e põe as suas cantigas de roda, histórias de encantar, bandas sonoras e outros sucessos, enquanto a mãe tamborila veloz no teclado as suas intermináveis traduções.

Hoje, a desmaterialização da música descarregada em bites e baites do mp3 num computador ou noutro artefacto, é coisa de adolescentes ingratos ou graúdos armados em espertos. Os pequenitos, como eu há mais de quarenta anos, merecem a experiencia táctil do objecto, do fascínio da capa com folhetos, e ouvir e até estragar os seus discos com figuras, à distância mágica dum simples botão “ligar e desligar”.

Sei bem que, mal-agradecidos, seguirão os passos dos irmãos, tapando também os ouvidos com uns fones a zunir, e que jamais entenderão a minha excentricidade de ouvir um sólido vinil, que afinal têm um “altar” condigno no sitio mais nobre da sala, para os meus raros momentos recreativos, de puro e solitário deleite.

Só mais um passo para o abismo

O assunto da supressão das SCUT sob o princípio do Utilizador Pagador, convenientemente embrulhado na questão dos chips, é prova provada da completa ingovernabilidade deste País. Qualquer cidadão com memória lembra-se que o fim das SCUT  foi bandeira empunhada por Bagão Félix há cinco anos no governo PSD CDS de Santana Lopes, sob a berraria indignada das Comissões de Utentes e autarcas respectivos, sempre patrocinadas pela oposição Socialista. Hoje os mesmos protagonistas simplesmente trocaram de lado na barricada: com custos insustentáveis para o erário público, em boa hora o governo Sócrates viu-se obrigado a inverter a estratégia, quem sabe se reconhecendo que não cabe aos contribuintes indiscriminadamente pagarem as auto-estradas que não usam. Em sentido contrário posicionam-se agora os partidos da direita, numa tentativa de tirarem partido do descontentamento das populações que perdem privilégios, e de se descolarem da impopularidade do executivo.

Finalmente, fazer dos chips nas matrículas um "caso" insanável parece-me um mero pretexto para a assumpção duma atitude oportunista, tanto do meu partido quanto dos sociais-democratas: o monstro do big brother a controlar os automobilistas tugas é um argumento populista e incendiário que assanha facilmente as hostes tão propensas a teorias de conspiração. E que, por um mero prato de lentilhas, não hesitam empurrar Portugal um passo mais em direcção ao abismo.

Levantados do Chão

 

Escapando ao massacre noticioso da morte de Saramago, que Deus o tenha, em boa hora me pus a caminho de Viseu para o Congresso da Causa Real, onde, durante o fim-de-semana, entre congressistas e observadores, se reuniram mais de duzentas pessoas oriundas de todo o país, um acontecimento que imprensa e restantes órgãos de comunicação social fizeram por ignorar olimpicamente. O facto é que, no coração de Portugal, na bela cidade de Viseu, durante dois dias se discutiu o futuro e o sonho duma regeneração de Portugal. Contrariando um país sem ideal ou utopia, encerrado nas suas funestas contas de mercearia e frívolas distracções fracturantes que o condenam à decadência e extinção.

Durante dois dias, no Teatro Viriato celebrou-se João das Regras, Alexandre Herculano, Almeida Garrett, Venceslau de Lima, Antero de Quental, Carlos Malheiro Dias, João Camossa, Ribeiro Teles, Henrique Barrilaro Ruas, Couto Viana e João Aguiar,  Almeida Braga, Francisco Sousa Tavares, Sofia Mello Breyner, e tantos outros obreiros do ideal monárquico desta nação quase milenar. Apelou-se à abnegada militância dos monárquicos em vez de discussões pueris, à intervenção voluntariosa, rua a rua, porta a porta, num empenhamento esforçado para mater o sonho vivo do resgate de Portugal. Foram contundentes e emocionantes as palavras proferidas pelo homem livre que é José Adelino Maltez. Foram sábias as palavras de José Valle de Figueiredo sobre a monarquia e o municipalismo, o nosso ancestral contrapoder da tendência macrocéfala do Governo Central. E quão pertinente foi a explanação de Rui Monteiro sobre a esquerda monárquica contra o preconceito, a pior barreira à inteligência. No final ficaram a ecoar as tão serenas quanto convictas palavras de Paulo Teixeira Pinto, num desafio ao banqueiro republicano da comissão das festas para um debate franco e democrático sobre a nossa anquilosada república que a todos nos subjuga e empobrece há cem anos. A nós, monárquicos, desafiou-nos à resistência e à acção, como resposta e serviço a um povo sedento de verdade e esperança.

Triste é que, enquanto isto, o país mediático, acentua o seu trágico e crescente divórcio com a realidade. Nele se despendem energias e recursos financeiros em inúteis discussões, sobre assuntos fracturantes e... eleições presidenciais! Como se estivesse nessa estéril instituição a solução para a sinistra crise económica e de valores em que o país se afunda. Entre desistir e lutar, há que saber escolher.

 

Fotografia: Maria Meneses

Uma parábola portuguesa com certeza

 

A poucos metros da minha casa está uma mercearia que se estabeleceu no final dos anos sessenta no lugar onde deveria estar a garagem do prédio. Aberta por dois casais da província que até hoje se revezam mês a mês entre “a terra” e o negócio, esta obscura loja desde então jamais teve qualquer incremento ou renovação. À excepção do leite do dia e da fruta, da qual se aconselha desconfiar da condição, tudo lá dentro é sujo, caro e bafiento. A falta de alternativa a menos de um quilómetro de distância e principalmente a venda “a fiado” permitiu-lhes durante estes anos fidelizar uma freguesia certa mesmo com preços exorbitantes. Com o passar dos anos além doutras casas e prédios, mais comércio geminou por ali e recentemente nasceu até um sofisticado Centro de Saúde da rede do ministério.

Acontece que por estes dias, do outro lado da praceta progridem imparáveis as obras dum moderno supermercado que comprometerá definitivamente as aspirações dos meus vizinhos merceeiros. Mas não se lhes nota qualquer apreensão ou ansiedade: as donas de casa e reformados continuam a ali parar, entre uma visita à tabacaria e ao café do lado, para dois dedos de conversa e um litro de azeite. E como ironia do destino estabeleceu-se uma cúmplice relação entre os donos do lugar e o pessoal das obras, quais condenados a conviver com os seus carrascos, que ao fim do dia ali se sentam nos caixotes da fruta a beber cervejas não sei se fiadas ou com algum desconto. Certo é que esta será uma das últimas cartadas destes modestos imigrantes de província: estagnados numa esquina da vida, trinta e tal anos chegaram conquistar uma velhice modesta e resignada. Desconfio que muito em breve voltarão para a terra cavar umas batatas e apanhar umas azeitonas a ver o sol poente.

Insignificâncias que fazem deste mundo um local aprazível

 

Foi com alguma emoção que há dias levei o meu pequenote pela primeira vez ao barbeiro lá do bairro, que como não poderia deixar de ser, é daqueles á antiga com poster da Michelin, onde nos podemos actualizar com revistas do Correio da Manhã, o jornal A Bola e conversa fiada de homens que não arranjam as unhas nem tiram sobrancelhas em cabeleireiros unisexo com preços desavergonhados.

O senhor António, recebeu-o como fez ao irmão mais velho há mais de quinze anos, pôs-lhe um banquinho de madeira para dar altura e uma longa toalha de nylon á volta do pescoço. O petiz, que ia muito recomendado, portou-se à altura, denotando até um certo orgulho quando pronunciou convictamente o seu nome e clube de futebol. À pergunta “que idade tem o menino”, num primeiro instante estranhámos a ausência de resposta, mas depois, comovido descobri que por debaixo do pano protector ele mantinha com esforço os três dedos hirtos como resposta. Tem já três anos o meu menino, e este mundo ainda é um local aprazível.

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