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João Távora

A herança

É com uma dor na alma que o afirmo: Lisboa antiga transformou-se nos anos mais recentes num mero bilhete postal ou num cenário de filme a tratar com efeitos especiais. Concedo até que a minha cidade mantém-se linda se vista das alturas, de preferência de miradouros ou então com o cuidado de o transeunte colocar sempre o olhar ao nível dum primeiro andar dos edifícios, por forma a evitar a visão do abandono, dos grafitos nas paredes e da esterqueira que impera, aos molhos ou espalhada pelos ventos.

Mais uma crónica moralista

Ontem á tarde, depois de umas voltas a pé pelo Chiado ocorreu-me o sugestivo achado de que, se até ao século XIX as crianças se ataviavam como adultos, hoje em dia os adultos querem é vestir-se como as crianças, por exemplo, com boné americano, t-shirt garrida com um excesso qualquer, calções e sapatilhas de Basquete (na melhor das hipóteses). 

De facto é especialmente durante o século XX que se verifica um crescente cuidado na diferenciação com o trajar infantil, na assunção da sua especificidade face aos adultos, expresso através de elementos coloridos e resistentes que evidenciassem a inocência dos petizes favorecendo a liberdade de movimentos que a brincadeira requer. Daí à proliferação de modistas e lojas especializadas foi um salto, e imagino que tardando em relação aos outros países ocidentais, nos anos sessenta já existiam em Lisboa pelo menos dois casos sérios na matéria, a italiana Brummel e a portuguesíssima sapataria Bambi para gáudio das mães mais extremosas e endinheiradas. Facto não despiciendo, é que o trabalho infantil só vem a ser proibido bastante mais tarde.
Democratizada como objecto de consumo acessível e transversal no ocidente, a moda é hoje inevitavelmente um reflexo do "espírito do tempo". Talvez por isso o adulto resista a qualquer formalismo e sofisticação, mais preocupado em vestir-se para chamar a atenção... pelo espanto. Idealizada a infância, acontece que ela é a representação aproximada do “bom selvagem” o devaneio de Rosseau, bem-aventurado, livre e inocente porque desligado de quaisquer normas e espectativas sociais que o corromperão (e quem é que inventou essa de que a infância é na sua natureza tempo de felicidade e inocência?!). Deste modo por estes dias a forma de vestir tende para uma cada vez maior informalidade, mas anacronicamente esmerada e até dispendiosa - todos diferentes, todos iguais, numa mensagem de emancipação e afirmação de inconsequência, exterioridade, descomprometimento, completa e inexoravelmente só. 

Em defesa deste discurso moralista tenho a dizer que me admiro tanto com uma garota de biquíni subindo a Avenida da Liberdade quanto um homem de fato e gravata no areal duma praia. E que acredito na liberdade de escolha individual como valor fundamental, e que ao fim do dia todos temos o direito de nos imaginar até um artista de rock. O que me parece trágico é que, se a evolução estética ocorrida na moda infantil durante o século XIX e XX reconhecia essencialmente a especificidades da criança com inequívocos direitos a um desenvolvimento no sentido da responsabilização e urbanidade, hoje os seus filhos ou netos parecem reclamar através das mais bizarros trajes um estatuto de total puerilidade, como uma geração que recusa ou resiste a crescer e assumir a sua quota de responsabilidade para o sustento ou avanço da civilização. 
No outro dia duas pessoas à porta do colégio dos meus filhos, despedindo-se utilizavam uma expressão aparentemente vulgar e incipiente mesmo entre duas caricaturas de adultos: "Adeus, pá, porta-te mal se puderes!". Talvez pelo enquadramento a coisa deixou-me a pensar. Certamente não quer dizer nada e não me lembro de como estavam vestidos. 

Podia ter sido muito pior

Ultrapassado o susto da iminência da bancarrota de José Sócrates e consequente intervenção dos credores em Portugal é curioso como vingou a tese critica de que a crise poderia ter sido menos maligna se o governo não tivesse usado de excesso voluntarismo, ou o intuito “de ir além da Troika”. Na minha opinião tenho ideia de que os anos de chumbo do “Memorando de Entendimento” nunca teriam sido levados a bom termo como foram se o governo tivesse sido temerário e exibido publicamente hesitações ou reservas na sua aplicação. Se a “brutal” firmeza com que as intenções governamentais foram anunciadas foi factual, tal resultou de um posicionamento para um confronto negocial de vida ou de morte com interesses instalados que se adivinhava extremamente difícil. O certo é que mesmo assim essas “intenções” expectavelmente jamais tiveram correspondência à realidade, sempre duramente “negociadas” nos limites da constitucionalidade com os lóbis e as forças de protesto que há pouco mais de um ano ainda cavalgavam o descontentamento num clima de pré-guerra civil encenado para as televisões. Salvos da falência e com o acesso aos mercados em condições há pouco tempo impensáveis, o certo é que no final, prevaleceu uma inaudita carga fiscal e um Estado hegemónico que captura o mérito e a iniciativa privada. Ao fim e ao cabo os socialistas deviam dar-se por felizes com o empate técnico alcançado: a terceira república abanou mas não caiu, o liberalismo nem vê-lo... e o País foi resgatado aos credores e consegue financiar-se. Podia ter sido muito pior, ou não?

O acessório de toilete de senhora

Esta entrevista a Nuno Godinho de Matos é muito relevante sobre as "elites" promovidas pelo regime que nos apascentam há décadas. Gosto particularmente da imagem a si próprio aplicada sem qualquer pudor, "um acessório de toilete de senhora", a propósito do seu papel nas meia dúzia de reuniões anuais do conselho de administração do BES em que participava e pelas quais auferia uns tentadores doze mil euros por ano. Claro que a causa do desastre foi a "supervisão". Deve ter sido também como berloque de fancaria que “no tempo dele” transportou uma mala cheia de dinheiro do grupo socialista do Parlamento Europeu para entregar a Mário Soares, uma revelação feita a propósito da falta transparência do financiamento dos partidos políticos. Como é bom de ver o enquadramento do vice presidente da Ordem dos Advogados e ex-deputado socialista Nuno Godinho de Matos que “toda a vida lutou contra a bandalheira e o facilitismo” está rigorosamente posicionada ao centro: é apoiante de António Costa para primeiro-ministro e de Marcelo Rebelo de Sousa para presidente da república.