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João Távora

A filha do regimento

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É assim o jornalismo militante - não interessa a veracidade dos factos relatados, antes passar uma mensagem. A entrevista da filha de Salgueiro Maia generosamente distribuída pela Lusa, pontifica hoje com chamada de capa em quase todos os jornais diários, que destacam este extraordinário apontamento: “Filha do capitão de Abril Salgueiro Maia, a viver no Luxemburgo há quatro anos, diz que foi "convidada" a sair de Portugal pelo primeiro-ministro Passos Coelho, lamentando a situação actual do país, que compara ao terceiro mundo”.

Importa referir que, sem querer por em causa a honestidade e competência dos socialistas - tudo gente boa claro está - há quatro anos, data da partida de Catarina, era José Sócrates que estava no poder, a negociar o resgate financeiro do país com a Tróica. Não tendo a minha modesta pessoa o privilégio de ser filha de Salgueiro Maia, que acabou indo trabalhar para um conhecido paraíso capitalista, gostava de deixar claro que, estando eu na época também desempregado, se um líder da oposição ou do governo, fosse ele qual fosse, se me dirigisse assim sem mais nem menos e me convidasse a emigrar eu agradeceria a surpreendente atenção, mas pensaria muito bem antes de aquiescer.

Ah, sei que não interessa nada, mas com uma mãe muito doente e quatro filhos dependentes virei-me por cá. E quem viu as coisas tão mal paradas há dois, três anos, desconfio que podia ter sido muito, mas muito, pior.

 

Imagem de "O Emigrante" - Charlie Chaplin, com uma vénia. 

A vergonha do amor

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   I’m slowing down the tune 

I never liked it fast
You want to get there soon
I want to get there last

(...)

Leonard Cohen  

Hoje em Cascais no jardim em frente ao meu escritório o meu olhar estranhou um casal que caminhava entrelaçado em passadas lentas e alinhadas. Essa visão lembrou-me manifestações antes tão comuns que depois catalogámos de possidónias, como bailaricos ou passeios nas tardes domingueiras com roupa de “ver a Deus”, nos jardins ou avenidas, a ecoarem ao fundo os gritos das crianças a brincar e o relato da bola num transístor. Se os nossos avós que tiveram de namorar “de janela”, se conformaram a encontrarem-se só em lugares públicos com um irmão mais velho ou uma criada, a minha geração envergonhada erradicou qualquer exibição de compromisso. E agora morram de vergonha os jovens leitores: o meu saudoso pai contava que antigamente no Liceu Passos Manuel onde estudou, os bons amigos andavam de braço-dado no recreio.
Claro que a minha geração, medrosa e puritana como se fez, baniu esses indecentes hábitos sociais – no meu tempo do liceu, tempos revolucionários, do rock pesado e da “poesia com mensagem”, já só sabiamos dançar sozinhos e caminhar de “mão dada” tornou-se uma pieguice. 

Enfim, a mesma geração que institucionalizou o nudismo, o amor livre e toda a sorte de fantasias eróticas, envergonhou-se de namorar, um assunto que circunscreveu à poesia. Curioso como ao mesmo tempo que aprenderam a tolerar demostrações públicas em homossexuais, homem e mulher tenham desaprendido de andar de braço dado com o andar sincopado. Curioso como, com tanto sexo e amor livre, tenhamos criado uma comunidade tão estéril e fragmentada. Porque o romance para fazer história tem de ser mais longo que uma canção pop. 

Fatal como o destino

A meio da vida apercebemo-nos que há algures um céu onde repousam esquecidas imensas maravilhosas canções. Apesar de terem encantado e mexido fundo no espírito de gerações, foram fadadas a morrer com as suas memórias.  

I'm a Fool to Want You

Já disse noutras ocasiões como tenho dificuldade em escrever sobre discos que não gosto, e como a coisa piora muito quando me apaixono por algum – talvez com receio do ridiculo que são sempre as declarações de amor. É por isso que venho adiando estas palavras sobre Shadows in the Night, o 36º disco de Bob Dylan que nos surpreende com a interpretação nasalada e displicente de dez temas criteriosamente repescados do reportório de Frank Sinatra, um seu antípoda da música popular. 

A estranheza de Shadows in the Night adensa-se ao constatarmos que a grande orquestra tipica de Sinatra foi substituída por uma pequena banda em que se destaca uma desconcertante pedal steel guitar de tonalidades havaianas. No mais, os arranjos são suportados pelo dedilhar da guitarra acústica de Bob Dylan, um contrabaixo e metais esporádicos. O resultado é o encantamento, que ganha laivos de submissão à vigésima audição. Produzido por Jack Frost que o grava "ao natural" - sem remisturas (hoverdubs), nem filtros - a coisa resulta mágica, como se os rapazes estivessem ali mesmo a cantar, a tocar, a respirar, para nós. O modo como foi captado o som produz um extraordinário efeito de presença física, potenciado se o álbum for reproduzido em formato vinil numa boa aparelhagem.
O facto é que um mês depois de ouvir Shadows in the Night, até parece que temas doces e amargos  como "The Night We Called It a Day" , "Why Try to Change Me Now", "Some Enchanted Evening", "What'll I Do" foram criados para a voz de Dylan, melancólico anti-heroi, cowboy rouco e desajeitado, e não para um glamoroso romântico do cinema e do music hall como Sinatra era, com a sua voz poderosa e sensual. Se lá em cima já tiveram a desfaçatez de lhe mostrar este álbum, ele certamente irá perdoar-me o atrevimento desta opinião. Ironicamente, parece-me que a interpretação de  "I'm a Fool to Want You" é o melhor tributo que Bob Dylan poderia fazer ao seu autor, que um dia disse do Rock 'n' Roll ser “a música marcial feita para delinquentes, cantada por cretinos.”  

De resto, o mais importante é comprar este álbum, e usufruir com deleite da Graça de se ter o coração perto duns bons ouvidos.

A chancela divina

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Constato que as milhares de peças musicais de distintos géneros e autorias com que me deleito em minha casa, são uma ínfima parte do património existente e das novas criações que todos os dias nos surpreenderiam se as pudéssemos abarcar a todas com o coração aberto. Uma prova do cariz transcendente da música, e por consequência da marca divina patente no Homem, é a infinidade de sublimes canções e melodias que são possíveis criar com apenas sete notas.

A propósito de reformas do sistema político

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A propósito deste interessante artigo de Manuel Vilaverde Cabral sobre a presidência da república e a reforma do sistema político em Portugal, e no que refere ao embaraço que representa o actual modelo de Chefia de Estado, convém ressalvar que, sendo a democracia pela sua natureza um sistema autofágico que vive do híper mediatizado e permanente conflito de facções e interesses, ela expõe as instituições nacionais a uma sistemática e perigosa erosão. Por isso requer este regime um órgão de soberania acima de todas as questiúnculas, capaz de, no topo da pirâmide, representar e congregar todas as partes da Nação. Uma instituição que, por ser hereditária, não tomou partido por qualquer facção nem depende de interesses políticos ou económicos. Essa instituição é o Rei, que tem a capacidade de consolidar o sistema, como o comprovam os exemplos dos países mais evoluídos e livres da Europa que são monarquias. De resto, Portugal tem o privilégio de uma Nação com quase 900 anos que possui uma incontestada Casa Real com comprovados pergaminhos no que respeita ao que é mais importante – o amor à Pátria.

 

A Cruz

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Cristo carregando a sua cruz. Ticiano 1565 

 
A Cruz é sinónimo da libertação: a dor olhos nos olhos, sem resistência à angustia, à dúvida, à incompletude. O desprendimento de nós face a grandiloquência do desconcertante destino torna-se afinal o vislumbre de um lugar de paz interior, de recomeço. A verdadeira revolução que concede a tranquilidade ao Homem: capaz de amar o outro como a si mesmo, capaz de amar o seu inimigo, assumir a sua cruz. A pacificação com o criador – a irmandade em Jesus Cristo. A morte que resulta em Vida, no homem Novo. A cruz é a noite escura de nós que afinal nos faz inteiros, livres do nosso precário personagem, hoje mesmo. A beleza da cruz. Aprendamos a não fugir dela, então. Só assim teremos uma boa Páscoa.