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João Távora

Tempos modernos

My Fair Lady deveu parte do seu sucesso à história duma rapariga da rua que com esforço aprende a ser como uma princesa. Se a peça fosse feita hoje, para alcançar o mesmo sucesso teria que contar a história de uma princesa revoltada que sem muito esforço se tornava numa rapariga da rua.

Perguntas simples

Irónico como a propósito de Donald Trump e Marine Le Pen o “jornalismo de referência” só agora descobriu o fenómeno do “populismo” que caracteriza pela “utilização de mensagens demagógicas, soluções irrealistas para problemas complexos emitidas através de imagens simplistas proclamadas em frases curtas de fácil compreensão principalmente através das redes sociais”. Afinal como é que os partidos do sistema vêm alcançando os seus resultados e desiludindo o eleitorado? Debatendo abertamente os desafios que pendem sobre a nossa sociedade e as reformas cada vez mais urgentes? Ou será que o adjectivo “populismo” só se aplica quando a oligarquia não gosta dos resultados?

A Casa da Avenida

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A «casa da Avenida», como ficou conhecida na família, deixou em mim uma marca indelével, como que um pilar da minha personalidade. Como casa da Avenida entendo não só o primeiro andar direito do n.º 232 da Avenida da Liberdade mas todo um ambiente caloroso de afectos e brilho que lhe imprimiam os meus avós, tios e todo o pessoal que lá servia, que, a seu modo, fazia parte da família.

Com esta crónica, que serve de introdução a uma biografia ficcionada que estou a escrever sobre o tema, pretendo fazer uma homenagem aos meus avós maternos, João e Chunchinha, que, com a minha bisavó, foram os grandes obreiros dessa casa acolhedora e aberta ao mundo, onde se cultivava a antiga arte da boa conversa, elegante e inteligente, como refere Augusto Ataíde no seu livro de memórias Percurso Solitário (Bertrand, 2016) ou Leonor Xavier em Casas Contadas (Asa, 2009), sem descurar a edificação dum sólido e fecundo núcleo familiar de matriz cristã onde cresceram a minha mãe e os meus tios. Ainda hoje nas reuniões familiares com a minha mãe e os meus tios se testemunha esse legado tão nobre de amizade, humor e graça, qualidades que sem mascarar dificuldades que em todo o lado existem, são sementes de civilização e carácter.

Pensando bem, aquilo que mais me marcou na Casa da Avenida foi a liberdade que me era concedida, a mesma que, pressupondo sentido de responsabilidade, fez dos meus tios e da minha mãe pessoas inteiras. Pessoa de enorme carisma, a Avó Chunchinha tinha, de facto, uma forma de relacionamento que sempre me cativou, talvez porque nunca pressenti qualquer sinal da complacência com que habitualmente os adultos se relacionam com as crianças.

Para a forte idealização daquela casa que germinou em mim ao longo da vida, contribuiu não só a enorme saudade das estadias felizes que até aos 12 anos lá passei, sozinho ou com o meu irmão José — onde éramos queridos e obtínhamos mais atenção do que aquela que poderíamos ambicionar em casa dos pais, em que a concorrência era grande —, mas também a memória do espaço físico e do fervilhar de vida circundante, ao mesmo tempo cosmopolita e de bairro, que naquela época fruía naquela zona de Lisboa ocupada por uma mistura bem equilibrada de serviços, comércio e habitação.

A Casa da Avenida foi estreada em 1892 pela minha bisavó Valentina Leitão aos quatro anos, quando para lá se mudou com os seus pais e irmãos. O elegante prédio de cinco andares com direito e esquerdo, situado no quarteirão entre a Barata Salgueiro e a Alexandre Herculano, onde então terminava a Lisboa cidade, tinha acabado de ser construído, e dele reza a lenda de ter sido o primeiro a ter instalação eléctrica de raiz. Os apartamentos eram grandes e tinham um pé direito alto como há muito não se usa.

A casa dos meus avós era atravessada por um longo corredor que ligava a parte nobre, com duas varandas voltadas para a Avenida da Liberdade, à zona de serviço, com entrada pelo n.º 77 da Rua Rodrigues Sampaio. Entre as salas da frente e a generosa cozinha e os aposentos das minhas tias e das criadas nas traseiras, ficavam mais quartos e duas casas de banho, que para um prédio do século XIX era muito avançado. O edifício também ostentava um curioso sistema acústico de intercomunicadores, numas mangueiras com bocal de cobre nos extremos, entre a portaria no hall de entrada e o interior de cada fracção.

A fachada era discreta, mas icónica me parece hoje a altaneira e pesada a porta principal, circundada de alvenaria trabalhada, cujo chiar do amortecedor antecipava um estrondo que me fazia fugir degraus acima, assustado. As escadas de madeira eram muito largas e enceradas almofadadas por uma passadeira encarnada, ladeadas de mármore de um lado e por um elegante e sólido corrimão de madeira que terminava numa estatueta graciosa, e numas largas escadas de pedra com um corrimão de bronze que precediam um hall aristocrático com elegantes frescos.

Vivia intensamente as minhas estadias naquele extenso mundo de descobertas e de liberdade. Se naquele andar tão soalheiro a vida fervilhava logo pela manhã cedo na área de serviço com os afazeres domésticos das empregadas, a chegada do barbeiro que vinha escanhoar a barba do Avô João, do padeiro, do marçano, a mulher-a-dias que esfregava ou puxava o lustro ao chão encerado, a Celeste que saía para a Praça a fazer as compras; a avó Chunchinha acordava mais tarde para, ainda deitada, me premiar com vinte-e-cinco tostões para um gelado com que me punha feliz a andar para a pastelaria Smarta. Depois, uma visita à sala verde onde se sentava a Bisavó Valentina (Avó Tina, como lhe chamávamos) a fazer crochet, dava direito a ouvir histórias, de desventuras de outros tempos que ela tão bem sabia contar, como aquela dum criado brasileiro dos seus pais que se suicidara para não ir para a guerra ou das escaramuças entre republicanos na Avenida, que obrigavam a família a deitar-se no chão do corredor para se protegerem de uma eventual bala furtiva…

Aos almoços uma ementa variada era servida na sala de jantar pela Celeste, sempre bem fardada — e como eu gostava daquela feijoada à brasileira, receita que desconfio tivesse sido importada pela minha Avó Tina. Depois do almoço abatia-se um profundo silêncio que só era quebrado pelas minhas solitárias brincadeiras com carrinhos de brinquedo no chão, pelos caminhos desenhados nos grandes tapetes, quando não tinha a sorte de ir com a Avó Chunchinha à baixa, para comprar algum prato de faiança «cavalinho rosa» para completar o serviço, ou bolachas Araruta e uma mistura de café na casa Pereira ao Chiado.

À noite, o jantar era quase sempre um momento de exaltação familiar, com a mesa cheia e boa conversa, quase sempre com uma ou outra visita de parentes ou amigos da casa, sempre acolhedora, iluminada por grandes lustres que irradiavam festa. Com sorte, os meus primos eram visita e logo armávamos em loucas correrias pelo interminável corredor, a desafiar o António na cozinha, que era noivo da Celeste. Isto até nos mandarem parar por causa de uma queixa do mítico Senhor Cruz, um vizinho muito doente que eu desconfiava ser apenas um pretexto para nos acalmar. Lembro-me do meu avô sempre elegante, com um lenço branco a sair do bolso do casaco, à conversa com os meus tios à volta duma pequena mesa de bar, servindo-se Whisky com gelo e Água de Castello.

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Ao final da noite, com a casa já toda a dormir, aquele corredor de luz fosca parecia-me assustador de atravessar, com os murmúrios vindos dos saguões que soavam da sombra que se adensava lá mesmo ao fundo, que hoje acredito serem choros e lamentos das vítimas de histórias sombrias, acontecidas ali bem perto na rotunda ou lá em baixo ao Terreiro do Paço, e que marcaram de forma tão dolorosa a vida dos meus antepassados naquela casa.

As festas eram magníficas, não por luxos, que raramente os havia naquela casa, mas pelo empenho e generosidade dos donos da casa. Todas as festas do calendário eram assinaladas na Casa da Avenida, sempre cheia de amigos, tios e primos: do Carnaval com partidas para todos os (des)gostos, à Páscoa com ovos de chocolate para todos os netos, mas principalmente a Ceia do Natal, servida depois da Missa do Galo na igreja de São Pedro de Alcântara, com peru, chocolate quente, sonhos e muitas outras delícias da época, que comíamos depois de abertos os presentes que se amontoavam junto à árvore de Natal. A cor do papel de embrulho identificava a proveniência.

Com pouco mais de sete anos dispunha-me, afoito, a explorar as redondezas com umas moedas no fundo do bolso dos calções. Começava pela tabacaria Glória, esquina da Travessa do Enviado de Inglaterra com a Rua de Santa Marta, onde podia cobiçar uma revista do Patinhas ou um carrinho Matchbox, para o qual o meu dinheiro não chegava. Descia então pela fervilhante Rua de Santa Marta, zona de serviço das casas burguesas da Avenida, passando indiferente pelas mercearias, talhos e «lugares» de frescos, por sapateiros, relojoeiros e casas de penhores, até chegar à Rua de São José, onde dava meia-volta, para aí estoirar o dinheiro num qualquer pechisbeque de plástico com rodas numa qualquer drogaria mixuruca. Voltava então a subir a infindável Rua de Santa Marta, com um apetite cada vez mais aguçado, arrependido de não ter guardado o dinheiro para comprar um bolo.

É importante uma palavra sobre o pessoal doméstico, que de facto era parte da família: tenho consciência que nesse tempo, final dos anos sessenta princípio dos anos setenta, se vivia o final de uma era e o começo de uma outra, com uma radical democratização do consumo e uma inflação que tornava proibitivos os ordenados das empregadas. Foi a época do advento dos apartamentos pequenos, a revolução dos electrodomésticos, a vulgarização dos restaurantes e do pronto-a-vestir que substituíam uma ancestral organização doméstica. Na Casa da Avenida ainda tive tempo de me afeiçoar a figuras de referência como a Conceição costureira e a Celeste. Muitas tardes passei eu a brincar na companhia da Maria da Conceição, que me contava histórias dum universo misterioso que eram as suas origens humildes, de um irmão que perdeu em criança. E era a Celeste que me vestia em pequeno, e que eu tanto gostava de acompanhar às compras ou de ficar a vê-la moer a carne no passador, ou dobrar em meias luas a massa de rissóis. Pensava na minha ingenuidade ser ela minha amiga para a vida, e estranhei muito que tivesse desaparecido sem deixar rasto depois do 25 de Abril, supõe-se para emigrar com o seu António. Há pessoas que não suportam a dor de uma despedida.

Com a morte da minha Bisavó em 1973, os meus avós não puderam renovar o contrato de arrendamento, e no ano de todas as revoluções viram-se obrigados a mudar-se para um pequeno andar — ironia do destino — na Calçada Marquês de Abrantes. Apesar da mobília e da decoração que remetiam para a memória da Casa da Avenida, num país em convulsão e já doentes, foi com muita dificuldade que os meus avós enfrentaram a nova realidade. As mortes dos meus queridos avós ocorreram espaçadas de poucos meses pouco tempo depois, desconfio que por desistência, na dificuldade se adaptarem a mais uma nova era.

Será que, apesar dessa derradeira amargura, tiveram alguma vez a noção do extraordinário legado que nos deixaram? Prometo contar-vos esta história em que estou a mergulhar com todo o detalhe e verdade que me for possível.

A estes heróis não devemos nada menos que isso.   

Humanidade

Não somos nunca sós. Somos em comunidade com aqueles que amamos e com os que nos precederam no tempo. Esse carisma é uma fresta com vista para a eternidade.

O Amor é que nos salva

 

Magnified, sanctified, be Thy holy name
Vilified, crucified, in the human frame
A million candles burning for the help that never came
You want it darker
Hineni, Hineni
I'm ready, my Lord

 

Passados os cinquenta a morte passa a fazer parte do nosso dia a dia como Espada de Dâmocles, quase nos habituamos à surpresa de ver partir os muitos que amamos e outros que, sem uma relação pessoal mas sendo uma referência, simpesmente nos habituaram a uma reconfortante coexistência. Na música popular há nesta década uma extraordinária e irrepetivel geração que atinge uma idade perigosa e nesse sentido 2016 tem sido um ano muito fonesto. É o caso do poeta, músico e escritor Leonard Cohen que agora nos deixou.
A verdade é que nos meus tempos de Liceu não adivinharia o reconhecimento que o cantor obteve na hora da sua morte, em grande destaque nos noticiários de prime time dos canais generalistas. Lembro-me de descobrir Leonard Cohen ainda miúdo escutando em casa com a minha irmã as suas canções para “gente grande”. Elas eram um desafio para o meu limitado entendimento do inglês, onde se intuía uma densidade que nunca parei de desvendar, ou apenas trautear a arranhar numa guitarra emprestada. Fascinavam-me na sua música aquelas geniais harmonias e a sua voz sombria contrastando com um coro de cristalinas vozes femininas. É dessa primeira fase, até a Death of a Ladies' Man, a que mais gosto desvendada pelos discos Songs of Leonard Cohen e depois com Songs of Love and Hate discos que ainda hoje guardo muito gastos pelo uso e que a malta da escola achava monótonos e deprimentes. É um lugar comum afirmar que Songs of Love and Hate é um portentoso hino à melancolia, à solidão. Definitivamente não se seduzia uma miúda gira com Leonard Cohen - ou talvez o problema fosse mesmo meu. Depois, pelo que leio por aí descubro que sou dos poucos que gostam  Death of a Ladies' Man que a produção de Phil Spector transfigura numa estranha coloração psicadélica como que plastificada, mas bela. Gosto muito da voz Leonard Cohen abafada atrás da "cortina de som", do desprendimento de  "True Love Leaves No Traces", da elegante devassidão em "Paper Thin Hotel" e  "Death of a Ladies' Man". Foi mais tarde o visionário álbum The Future que resgatou a minha paixão então mais adulta pela sua música e palavras que fascinam ou nos inquietam até hoje. 
Curioso como Leonard Cohen confessa à beira da morte em You Want It Darker publicado há dias que, mesmo no desespero do Seu silêncio, se encontra pronto para o encontro com o Senhor. Será certamente uma figura de retórica de quem passou uma vida a desafiá-Lo e a procurá-Lo. Eu pela minha parte que sou teimoso quero crer que o Nosso Senhor o tenha já recebido em Sua infinita Glória. Leonard Cohen o trovador aristocrata que veio da neve, aquele generoso homem elegante, culto e educado que tirava o chapéu depois de cantar para nos agradecer as palmas, a nossa devoção. De resto, concordamos no essencial: “Love's the only engine of survival”.

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Um grande galo

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 A provocação, surpresa (ou espanto) transposta num objecto é correntemente confundida com 'Arte'. O que é a Arte? Mais fácil dizer o que não é. O tempo tem o bom hábito de resolver estas questões. (A maior parte da música que ouiço não vai sobreviver cem anos). Tenho para mim que a Arte remete para o Belo e Transcendente. E que a obra não pode depender de um contexto. Um galo de Barcelos é um galo de Barcelos, não será a sua descontextualização que faz dele uma obra de Arte. Um galo de Barcelos gigante descontextualizado pode ser giro mas certamente não é uma obra de Arte. Nem um mictório.