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João Távora

Campo d’ Ourique

 

Igreja do Santo Condestável - 1954.jpg

Campo d’ Ourique foi durante muitos anos o centro do meu mundo. Um mundo quadriculado e plano, bom para andar de bicicleta, com o melhor cinema de Lisboa, o Europa. Sempre me pareceu o bairro perfeito, onde morava parte da minha família, se circulava com relativa segurança e possuía a mais útil carreira de autocarro, a nº 9, directa para a Avenida da Liberdade e para o mundo. Cresci num terceiro andar, com a escola da câmara logo ali em baixo. O ruído da agitada reinação nos recreios da manhã ou da tarde inspiraram por certo a minha infância feliz.

Com uma família conservadora e os irmãos em casa, foi muitas vezes com os miúdos da rua que eu aprendi os mais fascinantes segredos da vida. No meio de jogos e correrias, de bicicleta ou com a bola nos pés. Ali ao lado da minha casa, ficava a Praça Afonso do Paço, um rectângulo inclinado com descampado ao meio, perfeito para o deslizar da minha reluzente bicicleta. Era ai que marcávamos o alcatrão com autódromos pintados a giz, nos quais nos debatíamos em corrida com os melhores e mais afinados modelos “matchbox” de cada um. A cada saída da pista, retornávamos a última meta atravessada. O primeiro a completar uma volta ganhava. Ao cair do sol de Setembro, mesmo antes de recolher a casa, ainda valia galgar o muro lá em baixo na encosta e trepar à copa da figueira para apanhar os últimos figos doces. E assim romper umas calças e esfolar um joelho.
Mais tarde, mais crescido, quantas vezes à saída da Escola Manuel da Maia, ainda roubávamos tempo e ao fundo da Coelho da Rocha parávamos para a futebolada da ordem. Marcadas as balizas com as mochilas, dois para dois com "guarda-redes avançado", esgalhávamos um animado desafio, que com sorte não terminava com os atletas em fuga depois de partido um vidro.
O nosso pesadelo morava ao lado, ali em baixo da rua Maria Pia. Os “índios” do Casal Ventoso permaneceram toda a vida uma ameaça constante, signicavam o fim da brincadeira, em fuga ou em lágrimas. Uma bola de futebol, mesmo de plástico de má qualidade, era um bem escasso que atraía demasiadas atenções. Os jogos eram disputados com "um olho no burro e o outro no cigano". Nem de longe imaginávamos então o protagonismo que esse malfadado bairro inevitavelmente tomou nas nossas existências.
A minha vida em Campo d’ Ourique também se jogava às escondidas ou à bola nos pátios e jardins da magnifica Igreja do Sto. Condestável. Isso acontecia a seguir à catequese, antes da missa vespertina ou quando de passagem para a Travessa do Patrocínio, a casa dos meus avós. Este omnipresente templo neo-gótico que se vislumbrava da minha janela (construído com a colaboração do meu avô José, engenheiro civil), foi o palco dos meus primeiros e íntimos passos de aprendizagem espiritual.
Depois Campo d’ Ourique também me lembrará sempre o Jardim Maria da Fonte (da Parada), ao qual lá em casa chamávamos o Jardim das Rãs. O Eduardo dos Livros onde se podia comprar um número atrasado do Diário de Notícias, trocar uns livros do Patinhas, comprar cromos mais difíceis ou até Valores Selados. E havia os esplêndidos bolos da Aloma. E a Laranjina C, mas isso já é outra história. De Campo d' Ourique foram os meus primeiros amores e foi a minha primeira namorada.
E havia a Compasso, loja onde se encontravam todos os discos, livros e artefactos que fariam a felicidade de qualquer pessoa. Eram longos os momentos de deliciosa cobiça que nos concediam na loja, a mim a ao meu irmão. Era assim que plenos de desejo e de bolsos invariavelmente vazios, folheávamos as últimas novidades da BD e pedíamos para rodarem um LP meticulosamente escolhido nos infindáveis escaparates da música.
Assim, foi em Campo d’ Ourique que eu cresci. Que me fiz rapaz, a bem e a mal. Que atravessei e palmilhei tantas vezes, tantos quilómetros. Para ir à escola, ao liceu, à praça e à farmácia, aos meus avós, à igreja. Para todo o lado e para o inferno também. Finalmente para mim prevalecerá sempre uma alegre recordação deste bairro burguês de toponímia republicana, mas afinal tão luminoso e desempoeirado, feito à medida das pessoas. Um sítio onde se pode ser feliz.
 
Fotografias daqui

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