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João Távora

Os dotôres

Como bons latinos que somos, nós os portugueses adoramos os tratamentos formais e valorizamos incrivelmente um bom “estatuto”, de preferência bem “cristalizado”. Receio que o fenómeno não tenha tanto a ver com vaidades pessoais, mas antes com o anseio secreto de mais uma fórmula de “providência social”, e de amortecedor das agruras da competição profissional. Pouco dados a grandes liberalidades, parece-me que genericamente somos uma gente insegura.
Crescendo no meu mundo bem português, sempre vivi rodeado de doutores e doutoras, a começar com os “Stôres” do ensino preparatório, ao “Doutor” que vinha à nossa casa para receitar um qualquer antibiótico… para mais tarde aprender que também havia “Professores Doutores” (o que não significava que leccionassem obrigatoriamente qualquer cadeira) e depois descobrir que havia um título, “Bacharel”, que não tinha grande sucesso em Portugal.
Assim cresci e assimilei as variadas e distintas formas de tratamento social. Às tantas, tive a sensação que o "dotôr" funcionava como mais um nome próprio, necessário para alguns figurantes da minha vida, quase sempre com um estatuto hierarquicamente superior ao meu.
Agora os tempos mudaram. Desde há alguns anos, com as universidades e escolas superiores a debitarem dezenas de milhares de "dotôres" por ano, e porque não podemos ser todos "dotôres" e assim estragar a panelinha, o título passou a ser atribuído consoante o lugar de cada um na hierarquia. A secretária é licenciada em línguas e literaturas modernas, mas é simplesmente da D. Carolina que se trata. Já o chefe, que frequentou meia dúzia de cadeiras de uma obscura licenciatura, é o "Sôdotôr", literalmente “sem saber ler nem escrever”. Esta foi a lógica que se implantou. O Engenheiro, se é o "manda-chuva", assim é tratado. O outro, o assistente com o mesmo curso da mesma universidade, será, sempre e simplesmente, o Manel. Ai vida dura!
Acontece-me muitas vezes, quando corrijo o meu interlocutor ao telefone informando-o que não sou "dotôr", sentir quão inconveniente eu fui. Apercebo-me nessa altura de um mal-estar do outro lado da linha, como quem me diz que “isso” para o caso não tem importância nenhuma. Que esse tratamento me fora atribuído como mera formalidade reverencial. É então que caio em desgraça e vertiginosamente passo a ser apenas o Xôr João.
Curiosamente, na indústria hoteleira em que trabalho, um meio extremamente hierarquizado, até há poucos anos pura e simplesmente não havia "dotôres". Talvez por esta carreira nunca ter sido considerada muito prestigiante, antes algo servil.
Mas hoje, ironicamente, integram-se nesta indústria, nas chefias intermédias e cargos técnicos (recepção, comercial etc.), muitos jovens licenciados cujo reconhecimento do título de "dotôr" ainda não tem sentido, nem é valorizado. Têm que ir à luta, conquistar um lugar cimeiro na hierarquia para que o precioso tratamento um dia “conquiste” a luz do dia. E talvez, quem sabe, um lugar no cartão de visita.

Cada um tem o que merece

É recorrente e confrangedor: não há coisa mais irritante do que assistir pela televisão a um jogo da nossa liga betadine, num estádio com meia dúzias de milhares de espectadores (quando joga um dos grandes) e termos como som de fundo uma voz esganiçada, de um megafone: HOOOLEEEE-HOOOEEEE-HOOO-HOOO! NIGUEM-PARÒ-LARI-LOLÉ-HOOOOO.
Ponho-me a imaginar se se trata da voz da voluntariosa mulher do presidente do clube da casa, ou se é apenas um anónimo e persistente manuel, destacado como solista da deprimente claque.
Não há um sonoplasta de serviço que mude o microfone de sítio?

Uma questão de TAGS - Crónica

Tenho dois amorosos adolescentes em casa. Com eles (e mais através do conhecimento do "mundo" deles), apercebo-me das aspirações e realidade da geração jovem que agora desponta, nos alvores do século XXI. Constato todos os dias que eles (saudavelmente) desconstroem e desconfiam da herança que lhes queremos deixar. Aliás os miúdos acreditam firme e insolentemente que o mundo começou ontem, ao som do hip hop.
Quando eu tinha a idade deles, acreditava ter nascido no auge da história, e viver na curva vertiginosa da definitiva viragem do homem para a clarividência. Toda a iconografia juvenil, a expressão plástica, política e tecnológica nos anos 70 me pareceia apontar nesse sentido. Na tecnologia, pontificava a recente ida à Lua, a alta-fidelidade e o nuclear. O reacender do surrealismo na literatura, os Sex Pistols ou a Patty Smith, a música minimal de Jorge de Lima Barreto a pintura de António Palolo, tudo parecia ser possível, a regra e os limites estavam erradicados. Na moda, nas roupas, em tudo parecia-me impossível mais criatividade. A liberdade era um privilégio dos mais afoitos. Olhando para o hippie de tamancas, roupa "selvagem" e cabelo hirsuto, para as justíssimas calças do punk de cabelo pintado e camisolão até aos joelhos, duvidei que a originalidade e a contestação chegassem algum dia mais longe. O mundo tinha mudado para sempre e eu apanhara o comboio.
Mas olho para os jovens de hoje e espanto-me como a sua imaginação e irreverência se mantêm sem limites. De fato de banho a cair pelas pernas com boxers por baixo, t shirts por cima de camisolas, skate debaixo do braço e fones nas orelhas, aderem a distintas e diversas "correntes" estilizadas, os góticos, dreads, os (ainda) punks, os rastas etc. etc. trocam na Internet ficheiros de temas hip hop construídos pelos próprios, simples protestos ou declarações de amor. E assim, assustados e inseguros, eles afirmam-se donos incontestáveis da verdade e do seu tempo. Outra vez...
Mas parece-me quase sempre que o que lhes falta são "ideais". Quanto a mim, falta-lhes "colar" uma "ideologia", um "projecto" ou uma "utopia", à sua infindável energia contestatária. Falta-lhes colar um significado ao seu Tag. Aliás, o desprezo - quase sempre inconsciente - pela participação na res publica é por demais evidente na rapaziada. E é isso que me deixa mais apreensivo.
Eu, quando era um rapaz novo, julgava-me parte de um processo irreversível de construção de um mundo mais humanizado e justo. E, para dizer a verdade, ainda me penso assim.

Sobram os valores, caro Duarte

A questão é que, quando integrados na EU, o modelo de governação naturalmente se cinge a uma cartilha liberal “universal europeia” e à implementação de mais ou menos emergentes e óbvios pacotes de reformas. De resto, é com algum “golpe d’asa” na gestão várias pastas que se pode esperar mais ou menos eficiência e sucesso. Depois, Duarte, sobram os valores!

Ainda Cavaco Silva

Não sei qual é o espanto disto caro Rui. O PS e o PSD gravitaram desde sempre na mesma área politica, a social-democracia. Isso sempre se revelou ainda mais quando foram poder. Sim, ambos os partidos possuem nas suas fileiras bons e engomados liberais, prontos a integrar o aparelho. Sim, o PS tem uma franja de militantes esteticamente mais à esquerda, mais úteis quando o partido faz oposição. Do mesmo modo o PSD possui uns "históricos" mais conservadores, “activos” úteis para dourar um pouco a “pílula” e seduzir o espectro eleitoral mais à direita. O Sr. Presidente, com a retórica minimal e insegura que lhe é característica, não é mais do que coerente no seu posicionamento político.

Madeleine Peyroux



A Décima Colina traz-nos esta noite Madeleine Peyroux ao CCB. Com uma peculiar voz, esta cantora norte-americana “criada” em França vai contar-nos boas canções de pop, blues, jazz, (raios partam os rótulos!) temas próprios e demais clássicos anglo-saxónicos ou franceses. Com uma banda de qualidade, numa das melhores salas de Lisboa perspectivo um requintado festival para os sentidos. Dance Me to the End of Love! (salvo seja...)

Queridos Anonymous:

Recolham as dentuças afiadas. Hoje é o nosso dia. Hoje, só hoje, podemos espetar uns “pregos” na ortografia e escrever umas “radicalidades” inconsequentes? É que hoje é o dia mundial da tolerância!
Oh! Coisa boa!

Distorções - Crónica

A ressonância cresce ritmada. Um som profundo e arrebatador emerge das entranhas da terra cadenciado, ameaçador. As loiças do armário tilintam; o ar, o soalho, os vidros vibram. Alerta, com os meus sentidos atentos, procuro identificar a “ameaça”. Nada a temer! É só um “ganda som” a troar do porta-bagagens de um pequeno carro utilitário que chegou à minha porta exibindo a última maravilha da tecnologia de hipermercado.
</a>Há dias, um colega meu dizia, orgulhoso, que "sacara" mais 200 horas de música para um qualquer fantástico “gadjet” portátil. Assim, ele gaba-se de possuir, de forma quase gratuita, uma fonoteca infindável, um ruído permanente e acessível em todo o lado: no carro, no escritório ou em casa. A Internet, e os modernos softwares de compactação de ficheiros de musica, MP3 e quejandos operam milagres. Agora, quaisquer quatro gigas chegam para arrecadar toda a música do mundo até à mais antiga, a dos anos oitenta. Finalmente, vendem-se dispositivos de leitura de todas as cores para todos os gostos e em tamanhos e formatos impensáveis.
Mas o que está a dar, de resto, é o “cinema em casa” e o magnifico “surround”. O estrondo para todas as bolsas. Nos modernos equipamentos sonoros 5.1, o patego ouve um soco como uma batida dum bombo: até treme o ar. Um respirar temeroso soa como se fosse um ciclone. A cada gesto do herói, estrondosos ruídos movimentam-se no espaço - de trás para a frente e da esquerda para a direita. Com esta generosa tecnologia de ponta, podemos até ouvir um concerto que roda e salta sem parar à nossa volta. De trás do sofá, p’rá frente do retrato dos sogros. Em movimentos hipnóticos e surreais, um qualquer violoncelo surgirá em ameaços ao meu encontro, ou em movimentos laterais bem ritmados. Uma emoção sem fim. Não importa se ouvimos Bach, um uivar de cão ou um míssil a rasar. Para alegria e entretenimento geral, todos os efeitos se transformam em pura adrenalina, movimento, ritmo, enfim, numa animação feérica.
Alguém quer saber que a natureza não produza semelhantes sonoridades? Ou que os sons (frequências) “médios” aparentem provir de uma lata de coca-cola? O que interessa é a estridência dos cinco canais de som, apoiados pela estrela da companhia, o celebre “subwoofer” com a potência de uma máquina de lavar. Por fim, nada nem ninguém escapa a essas baixas frequências em alta intensidade. Não há mais subtileza, tonalidade, cor ou textura sonora. E está tudo a ficar surdo.
Aos cinco anos, os meus avós ofereceram-me um "transístor". Desde então sempre tive música perto de mim. Aos oito, fui com os meus tios ao S. Carlos e fiquei arrebatado pelo vigor de uma orquestra sinfónica. Pelos dez anos, aprendi o que era uma alta-fidelidade (atente-se no termo) quando a minha tia Isabel trocou de gira-discos e me proibiu de mexer no novo, mesmo que fosse com os olhos. E a delícia que era para os meus ouvidos o efeito (inconsciente) da estereofonia, e da amplitude da modelação das frequências sonoras? Até ter o meu primeiro emprego, nunca consegui ter um som de jeito, mas tentava, lá isso tentava. Construí colunas na aula de Trabalhos Manuais com altifalantes comprados na Feira da Ladra, fiz ligações perigosas entre vários aparelhos. No final salvava-me com a telefonia em FM que me oferecia já uma boa sonoridade.
Já adulto, depois de casado, fui “compondo” um sistema de som de que hoje me orgulho e me satisfaz. Bem tratada pelos diversos componentes, a minha música sai em plena e robusta liberdade de duas pesadas colunas Tannoy. À antiga, a estereofonia basta-me: quando bem instalada projecta um espectro de palco, com o relevo e dinamismo necessários. É aquilo que presenciamos num concerto, acústico ou amplificado seja no CCB ou no S. Luís. De resto, é fechar os olhos e deixar-me embalar pela infinita paleta de texturas, de cores e tons, todas as nuances sonoras que a arquitectura da minha sala permite. E, sossegado, ouvir uma obra-prima. Assim tenha eu tempo e disponibilidade interior para a arte e para a beleza. Para adivinhar o absoluto e assim ligar-me ao que é maior, divino e grande no homem.

Dia de S. Martinho

Hoje à tarde, debaixo de um sol radiante, fomos a Almada, cidade onde possuo velhos amigos e que visito com gosto.
Em passeio a pé, ali entre o Castelo e o Seminário, por um antigo e modesto “bairro” de traçado “ergonómico”, comentava com a minha mulher a simpatia e beleza do local. Foi por aí que para “fazer tempo” decidimos entrar num pequeno café e bebermos uma bica. Calorosamente acolhidos pelo casal proprietário, de seguida fomos presenteados com um cálice de jeropiga e um pratinho de castanhas acabadas de assar, mesmo a estalar. Assim como se fôssemos parentes em visita, e sem direito a recusa. Dia de S. Martinho, lembram-se?
Gestos que marcam e que reflectem o lado luminoso das nossas gentes e tradições.

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