Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

João Távora

É difícil mas é assim

Aceitar que os diferentes valores, pessoas ou ideologias existem, justificadas e independentes de nós e do nosso preconceituoso ego, devolve-nos sempre mais razão, mais conhecimento e mais realização.
A inteligência obriga à boa fé: o monárquico a questionar-se sobre as virtualidades da república, o católico a auscultar os fundamentos do materialismo, etc. etc. etc.
A expressão do desprezo pelo contraditório, a prática da desonestidade intelectual e do insulto no discurso indicam sempre ao interlocutor a fragilidade, a insegurança e o medo do seu autor.

Desgosto


Há dias recebi por e-mail o convite para assistir via Internet à conferência de imprensa de Tony Banks, Phil Collins e Mike Rutherford, três dos membros da minha banda de eleição. Por instantes o meu coração acelerou esperançado. Mas ontem ao ler a notícia no DN logo me desiludi: afinal os três rapazes já cinquentões, decidiram, num acto de infinita generosidade, voltar à estrada para uma série de concertos “de estádio” à moda dos anos 80 e 90. Sem o vocalista Peter Gabriel e o guitarrista Steve Hackett, verdadeiras almas do grupo que inovou e fez diferença nos anos 70, os eventos serão vulgares megaproduções de grande consumo. Não entendo porquê. Ou antes, entendo que, transformados numa vulgar banda pop, Tony Banks, Phil Collins e Mike Rutherford decidiram agora rapar o que resta do “filão” que é a marca "Genesis".
Ainda acreditei num milagre da reedição da antiga banda, pois até parecia lógico: a idade não seria problema, pois eles sempre tocaram sentados, uma elegante melodia complexa e cerebral, qual grupo de música de câmara. E essa tournée serviria para registarem para a posteridade as suas "enormes" criações com as novas tecnologias de gravação de som e imagem. Uma oportunidade de negócio que favorecia uma imensidade de fãs devotos (e tolos) como eu.
Agora perdi definitivamente a esperança que um dia se realize a mítica reunião dos Genesis. Vou ter que me contentar, em Março, em assistir na Aula Magna à performance dos Musical Box a tocarem o Selling England by the Pound e o Foxtrot ao vivo. Uma boa imitação que vale mais que a fraude anunciada pela "marca" oficial.

PS: Acredito que muitos inadvertidos leitores não entendem a razão de ser deste culto, desta paixão. Sem ter deixado um registo vídeo de jeito, esta banda dos anos 70 deixou um legado musical único. Mas experimente-se espreitar por um motor de busca a quantidade de sites de fãs dos Genesis. Atente-se aos festivais e concursos de bandas “Genesis” que se organizam por este mundo fora. Para os que gostaram, tornou-se uma enorme paixão, e como tal o tema é difícil desenvolver em palavras.

As palavras dos outros

(…) Ora tudo isto é só para dizer que de vez em quando os papéis invertem­‑se. Agora somos minoria, e vocês o Ancien Regime. Agora vocês têm os media, nós só temos os blogues (ah, mas temo-los, e vamos usá-los!...). Vocês têm as palavras incendiárias, nós temos a moderação. (…)

"O referendo Louçã" - Jorge Lima no Blogue do não

O não de Cavaco Silva

Cavaco tem razão. Os princípios são princípios. A admissão da pena de morte como forma de justiça é uma barbaridade à qual o homem civilizado não pode ceder sob qualquer argumentação política ou pressão popular. Ser contra a pena de morte, para mim, separa os povos civilizados da barbárie. Por mais odioso e abjecto que seja o condenado. Nem sempre a coerência com os princípios dá votos, eu sei. E até poderão existir intrincados e prementes argumentos a favor da aplicação da pena, em casos “especiais” e “limite”. Mas para mim, definitivamente, não compete ao homem (instituição, estado) destinar a vida ou a morte de outro homem. As afirmações de Cavaco Silva são portanto totalmente coerentes e expectáveis.

PS: Era uma coisa deste género que o JPH devia ter escrito em vez da rasca traulitada que postou na sua glória fácil.

Janelas

Interrompo o trabalho no computador, levanto-me, espreguiço-me, e passando pela janela olho a praceta enlameada lá em baixo. Cruzo o olhar com o homem do bar vizinho que apanha umas folhas molhadas da esplanada. Intimidados, cada um recolhe “à sua vida”.
A Carolina, na janela da cozinha, sentada sobre o cesto da roupa suja, desvia a cortina e aí fica a ver o movimento da rua, as cores dos carros, a Marta que volta tarde da escola. A chuva copiosa que cai. Com sorte, ainda apanhará a mãe a chegar do trabalho.
No auge da minha inocência, tive direito às minhas janelas. Horas vagas ou de perguiça, intervalos de brincadeiras e de deveres adiados. Refúgios solitários, tempos de crescimento.

Em Campo d’ Ourique, no terceiro andar, a janela da sala da casa dos meus pais foi minha companhia de longas e íntimas horas. Contraditórios momentos de tédio e contemplação. Quantas esperas. Num qualquer Domingo de Inverno, à tarde, com o cachecol verde e branco de lã tricotada, sentado com o queixo no parapeito à espera do tio Manel, no seu mini cor de vinho, para irmos a Alvalade. Esperas intermináveis. Lá do cimo, via o gato fugir para baixo do "carocha" beije do meu pai. Via as vizinhas que esbracejavam uma qualquer conversa banal. À minha esquerda, ao longe, o panorama da Avenida Duarte Pacheco a debitar o veloz trânsito para Monsanto ou para as Amoreiras. E telhados de casa baixas, até ao pátio da Escola da Câmara logo ali em baixo. Do meu lado direito, a mercearia da Sra. Natália… frutas encaixadas, vidas do bairro, rua acima, rua abaixo. Ao fundo a Igreja do Sto. Condestável, com o seu enorme vitral neogótico, delimitava a minha vista. A televisão, atrás de mim, a passar o "TV Rural"…
Um dia qualquer em Junho, depois de passar no exame da quarta classe, abanquei nessa janela à espera da minha bicicleta, promessa antiga, que com a minha mãe comprara dias antes na Rua do Crucifixo. Se bem me lembro aí dediquei dois ou três dias de interminável espera e cogitação. Vinha uma carrinha de carga, o coração acelerava… repentinamente virava à direita para a Ferreira Borges… bolas! Quando iria ser finalmente feliz? Distraído, contava os carros e fazia secretas apostas. E forçava a recordação visual da bicicleta escolhida, verde metalizada… brilhante cor de sonho. Ironicamente, foi durante uma fortuita e mais demorada ida à mercearia, a recado da minha mãe, que chegou a encomenda. “João! Chegou a bicicleta!”, gritavam as minhas irmãs miúdas enquanto eu chegava a casa com as compras…
Depois, houve aquelas janelas sem vista, que me deixaram um chorrilho de memórias em sons. Pregões e pífaros de amolador, ou o cantar da passarada. As andorinhas e criançada a brincar. Assim era em Campo d’Ourique.

Outra janela da minha vida foi na casa da minha avó, na Avenida da Liberdade. Uma varanda, no caso. Ali, o que me animava era o movimento e trânsito intenso, os autocarros verdes e brancos, uns anunciando uma bebida de chocolate, outros uma qualquer marca de baterias. E o que me divertia ali do primeiro andar, a ver o ciclista estafeta da Marconi à pendura no varão da porta traseira do autocarro, subindo “a nove” a elegante Avenida. Uma artéria verdadeiramente cosmopolita, o “coração do império”, plena de actividade e animação. Com enorme excitação, lembro-me de assistir com tios e avós à passagem das Marchas Populares. Lembro-me das vistas das luzes, dos balões coloridos, e guardo ideia dos cheiros secos e quentes de início do Verão. E a abertura da Feira do Livro, que trazia àquelas vistas um mês de distinta animação: dezenas de barraquinhas e gente, muita gente, noite dentro. Com sorte, e mais vinte e cinco tostões, o meu irmão e eu ainda desceríamos as escadas para comprar um livro do Zé Colmeia ou do Bolinha em promoção.

Hoje, em minha casa, mal paro à janela. No máximo, quando está bom tempo, leio à varanda, que não tenho tempo para desperdiçar. Mas, da rua ao fim da tarde, ao chegar a casa, cumprimentando o merceeiro e a vizinha que passa, vislumbro a minha filhota, na janela da cozinha, de sorriso franco que me acena boas vindas. Feliz.


Fotografias daqui

Quando o homem quiser? - Crónica

Para mim a festa de Natal é no dia 25 de Dezembro. Para a ocasião guardo uns dias de férias e, com a alma vestida de gala, nesse dia celebro em família o nascimento de Jesus Cristo. Diariamente durante as quatro semanas precedentes, com a ajuda das crianças, iremos desfolhar um calendário do advento numa honesta tentativa de preparação para o grande evento. Para mim, a celebração do Natal está protegida pelo sentido e pela essência que a fundamenta.
Porém, com crescente ruído outra festa já se faz anunciar. Uma canseira. Chamam-lhe natal, mas será outra coisa por certo. É que ao contrário do que disse um poeta, seguramente o Natal não é “quando um homem quiser”. O "homem" normalmente quer outras coisas.
A quase dois meses da data, leio a notícia que a cidade da Amadora já inaugurou as iluminações de Natal. A feira começou, nem posso acreditar! As decorações na Avenida da Liberdade, umas bolas gigantes azuis e brancas, ameaçam acender-se a qualquer momento. A televisão já iniciou as exaustivas lavagens de cérebro apresentando um infindável e tentador catálogo de coloridos pechisbeques, que farão a criançada feliz por cinco minutos - ou apenas um instante. Anunciam-se automóveis de sonho em prestações suaves a pagar lá para as calendas gregas. Centenas de pais natais, animados, reais, digitais, vestidos à Benfica preparam-se e já “aquecem” ordenadamente para o massacre. Nos próximos dois meses vamos levar com o Santa Claus no Espaço, no Comboio, no Far West, na neve e no Havai, na rua do Ouro e no Shopping. Tanta poluição sonora e visual desorienta as crianças e confunde-nos a nós, adultos.
Enfim, o sonho já está à venda para todas as bolsas.
O problema é que, como acontece com todos os sonhos, um dia acordamos estremunhados com a realidade. Sem resolver o vazio, sem praticar o amor, sem cumprir a relação que nos justifica.

Aproveitada pelo político, pelo publicitário ou pelo comerciante, despojada do seu fundamento espiritual (essencial), a festa do Natal hoje em Portugal é vulgarizada e desvirtuada. Impregnada de frágeis e patéticos ideais líricos, esta quadra tornou-se território de um ensurdecedor despique de marketing, um monumento ao desperdício e à opulência. A felicidade descartável, os sonhos recarregáveis estão em promoção num qualquer hipermercado perto de nós. Um deprimente histerismo consumista é (cada vez mais) longa e exaustivamente promovido pelos ares da cidade, pronto-a-vestir, pronto-a-comer, pronto-a-usar e pronto a esquecer.
E se calhar alguns inocentes mais entusiastas consumidores desta feira de ilusões, atafulhados de dívidas e de tralhas inúteis vão despertar de novo, em Janeiro, para uma pesada e gratuita depressão pós-traumática pós-stress.

Pág. 2/2