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João Távora

Notas duma viagem no fim de Setembro

Cheguei já de noite ao hotel em Belfast depois de ter percorrido Londres e Dublin em três dias. Trata-se da última etapa duma maratona de trabalho. Cheguei lá de comboio, atravessando as verdejantes planícies irlandesas na companhia de Eça. O tempo está cinzento e frio, à maneira do Inverno português. Chove. Quando, oriundos de Lisboa descíamos para Dublin e atravessávamos as nuvens negras, um casal irlandês de regresso a casa lamentava a sua negra e húmida fatalidade. Fontes Pereira de Melo gabava o clima em Portugal, como uma divina compensação do nosso crónico atraso cultural, industrial, infraestrutural. Na Irlanda até há pouco tempo tinham as duas coisas: o atraso e o mau tempo. Valeu-lhes sempre uma alma enorme.
Em Belfast a chuva não é um acontecimento. Ela cai num choro contínuo, de mágoas ancestrais. Um casal jovem passeia o bebé em Donegall Square num carrinho de coberto por uma capota transparente. As bicicletas rolam indiferentes sob os oleados dos seus ciclistas. O povo ávido de se esquecer, escapa pelo meio da chuva para os seus pubs e bares, para bem regar o fim da tarde.
Em Londres, um gigantesco formigueiro humano, multirracial - o sonho realizado de qualquer verdadeiro internacionalista - labora numa impressionante eficiência e harmonia. Do aeroporto, ao trânsito na cidade, ou numa loja de pronto a comer, tudo funciona "sobre rodas". Nota-se prosperidade, e as pessoas são simpáticas e cooperantes. A mim, até um tardio jantar de Fish and chips me soube pela vida no Langan’s em Mayfair (o local indicado para encontrar genuínos indígenas na tradicional e entusiástica copofonia).
Cai sempre bem um sorriso ou uma piada de ocasião ao viajante solitário, em ambiente estranho e natural tensão. Aconteceu de madrugada, no hall do hotel em Belfast à espera de um táxi para mais uma jornada de viagem e aeroportos, quando comentei com o recepcionista um curioso pássaro de cauda comprida que observava a saltitar no jardim. O simpático irlandês, disse-me o nome do bicho (perdi a nota); e com um sorriso irónico tratou de me informar que, segundo o saber popular, eu teria que ver outro igual antes de partir, ou a visão significava um sinal de azar. Não vi, e cheguei esta tarde a Lisboa, à Portela, sentado na fila treze, de boa saúde e disposição.

Domingo

Evangelho segundo São Lucas 16, 19-31

Naquele tempo, disse Jesus aos fariseus: «Havia um homem rico, que se vestia de púrpura e linho fino e se banqueteava esplendidamente todos os dias. Um pobre, chamado Lázaro, jazia junto do seu portão, coberto de chagas. Bem desejava saciar-se do que caía da mesa do rico, mas até os cães vinham lamber-lhe as chagas.
Ora sucedeu que o pobre morreu e foi colocado pelos Anjos ao lado de Abraão. Morreu também o rico e foi sepultado. Na mansão dos mortos, estando em tormentos, levantou os olhos e viu Abraão com Lázaro a seu lado. Então ergueu a voz e disse: ‘Pai Abraão, tem compaixão de mim. Envia Lázaro, para que molhe em água a ponta do dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado nestas chamas’. Abraão respondeu-lhe: ‘Filho, lembra-te que recebeste os teus bens em vida e Lázaro apenas os males. Por isso, agora ele encontra-se aqui consolado, enquanto tu és atormentado. Além disso, há entre nós e vós um grande abismo, de modo que se alguém quisesse passar daqui para junto de vós, ou daí para junto de nós, não poderia fazê-lo’. O rico insistiu: ‘Então peço-te, ó pai, que mandes Lázaro à minha casa paterna – pois tenho cinco irmãos – para que os previna, a fim de que não venham também para este lugar de tormento’. Disse-lhe Abraão: ‘Eles têm Moisés e os Profetas. Que os oiçam’. Mas ele insistiu: ‘Não, pai Abraão. Se algum dos mortos for ter com eles, arrepender-se-ão’. Abraão respondeu-lhe: ‘Se não dão ouvidos a Moisés nem aos Profetas, mesmo que alguém ressuscite dos mortos, não se convencerão’.

Da Bíblia Sagrada

Fora de série (8)

Justificar o meu deslumbramento por uma música, por uma tela ou por qualquer performance artística afigura-se quase sempre pena maior do que arrancar um dente. Daquilo que eu gosto muito, gosto como um autêntico basbaque, com arrepios no corpo e pele de galinha na alma. E a relação que desenvolvo com o objecto da minha percepção é sempre muito condicionada pelas circunstâncias emocionais. Os estímulos e impressões daí resultantes são assunto terrivelmente solitário e de difícil expressão. Antes assim não fosse.
Vem isto a propósito de Os Vingadores (Grã Bretanha 1961-69), a minha saudosa série de TV que eu devorava fascinado cada episódio, através da velha televisão a válvulas da casa dos meus pais. No início, quando ainda mal sabia ler as legendas, assistia aos episódios numa semi-clandestinidade. É que numa família pouco liberal como a minha, a criançada tinha impreteríveis horas para se deitar. Mas havia truques e manhas para me fazer passar despercebido: no chão, de pernas cruzadas a respirar baixinho, num discreto recanto. Até que o meu pai dava conta que eu ali estava, tenso, mas flagrantemente feliz. Às vezes ele, adorável como sabia ser, suspirava e lá condescendia; outras, corria-me dali para a cama, cortante e autoritário, mesmo na altura do emocionante desenlace. Construí a relação com o meu pai com cumplicidades e desavenças. Ele era enorme, irascível e... meigo. Quantas vezes ficávamos os dois noite fora a ver Os Vingadores ou o Comissário Maigret... Os anos que passaram, progressivamente, acentuaram a nossa crónica incomunicabilidade. Mas como eu o admirava, mesmo quando na adolescência lhe ganhei os primeiros jogos de xadrez...
Num rebanho de cinco irmãos, cada um tinha que sobreviver e afirmar-se como podia, e nós lá arranjávamos os nossos "fetiches" ou "causas". Eu, além do Sporting – um factor não diferenciador -, era simplesmente pela Inglaterra, nas marcas de carros, no futebol, no rugby ou na Fórmula I. Até me dava um secreto prazer saber que a criadora do Noddy era britânica.
Os Vingadores possuía arrebatadores atributos para me seduzir: mistério, um herói com estilo, carros, perseguições de automóveis e mulheres deslumbrantes. Sabiam que Catherine Gale, a miúda (Honor Blackman) da terceira série veio a ser a Bond Girl de 007 contra "Goldfinger"?
John Steed (Patrick McNee) era um gentleman, imperturbável herói, com o seu charmoso meio sorriso, um inseparável chapéu de coco anti-balas e o conveniente guarda-chuva, não só por causa do britânico clima, mas por ser uma arma secreta, ao bom estilo de 007.
O resto eram lustrosos e potentes automóveis sport, em perseguições pelas ruas de Londres, nas estradas e nos campos da minha mistificada Inglaterra dos Beatles. John Steed conduzia um espectacular Rolls Royce Silver Ghost de 1927. Gostava do jeito afidalgado do herói e daquela pronúncia ao estilo BBC. Gostava dos cenários rocambolescos, dos palácios, bibliotecas e frondosos jardins. Também me deixei seduzir por Emma Peel, (Diana Rigg) mulher resoluta e ágil no seu macacão de couro, quase tão feminina como a idílica fada do Pinóquio. Mais tarde foi substituída por Tara King (Linda Thorson), na quinta série, também sexy mas mais irreverente, a acompanhar o decurso das modas da revolucionaria década de sessenta. Por fim lembro-me da “Mãe”, o fleumático e misterioso chefe da organização ao serviço de Sua Majestade. Só no início da penúltima série nos é revelado o seu aspecto físico: um homem imensamente obeso sempre sentado na sua cadeira de rodas e rodeado de telefones.
Mas nem sempre devemos voltar aos locais onde um dia fomos felizes. Há uns anos revi um episódio da série e confesso que sofri uma certa desilusão: os efeitos especiais não eram nada do outro mundo, e o guião menos sofisticado do que me parecia então. Essa simpática ilusão fora criada à conta da minha ingenuidade, e dos afectos vividos nesse tempo. É talvez por isso que a série Os Vingadores me trará para sempre boas memórias.

Ainda o Aquilino e a festança dos jacobinos

Os monárquicos não querem Aquilino em Santa Engrácia por causa da sua eventual participação no regicídio, os órfãos do Dr. Afonso Costa querem-no em Santa Engrácia precisamente por isso.
Sobre os dislates da jornalista Fernanda Câncio, a respeito da monarquia constitucional e o regicídio, ler na integra o brilhante texto de Pedro Picoito no Cachimbo de Magritte.

P.S.: Ó Pedro, tem paciência, mas confessa lá onde gamaste esta preciosa ilustração, e eu prometo não te chamar monárquico!

Diz-me o que lês...

Sim Cristina, lá estão os dois príncipes da III república em animada "cavaqueira", sentados nos presidenciais cadeirões. Uma lição prática do perdão e da caridade cristãs à desapiedada sociedade civil. Mas a mim, o que me salta à vista na fotografia de capa do DN, é aquele grande e fabuloso livro na mesa logo à frente de Mário Soares: Legenda Áurea de Tiago de Voragine, editado pela Civilização em 2004
Originariamente intitulado Legenda Sanctorum, esta brilhante obra sobre “o que deve ser lido dos santos” publicado em meados do Século XIII, terá sido um dos primeiros bestsellers da nossa civilização cristã, com cerca de dez mil cópias manuscritas. De resto pergunto-me se o livro (sublimemente ilustrado com obras de Giotto, Duccio, Fra Angelico, Simone Martini, Piero della Francesca, Masaccio, Masolino, Pietro Lorenzetti, Ambroggio etc.) será um mero adereço decorativo, ou se algum dos recentes inquilinos daquele palácio, se dignou a folhear o aquele histórico tesouro literário e artístico.

Domingo

Evangelho segundo São Lucas 8, 4-15

Naquele tempo, reuniu-se uma grande multidão, que vinha ter com Jesus de todas as cidades, e Ele falou-lhes por meio da seguinte parábola: «O semeador saiu para semear a sua semente. Quando semeava, uma parte da semente caiu à beira do caminho: foi calcada e as aves do céu comeram-na. Outra parte caiu em terreno pedregoso: depois de ter nascido, secou por falta de humidade. Outra parte caiu entre espinhos: os espinhos cresceram com ela e sufocaram-na. Outra parte caiu em boa terra: nasceu e deu fruto cem por um». Dito isto, exclamou: «Quem tem ouvidos para ouvir, oiça». Os discípulos perguntaram a Jesus o que significava aquela parábola e Ele respondeu: «A vós foi concedido conhecer os mistérios do reino de Deus, mas aos outros serão apresentados só em parábolas, para que, ao olharem, não vejam, e, ao ouvirem, não entendam. É este o sentido da parábola: A semente é a palavra de Deus. Os que estão à beira do caminho são aqueles que ouvem, mas depois vem o diabo tirar-lhes a palavra do coração, para que não acreditem e se salvem. Os que estão em terreno pedregoso são aqueles que, ao ouvirem, acolhem a palavra com alegria, mas, como não têm raiz, acreditam por algum tempo e afastam-se quando chega a provação. A semente que caiu entre espinhos são aqueles que ouviram, mas, sob o peso dos cuidados, da riqueza e dos prazeres da vida, sentem-se sufocados e não chegam a amadurecer. A semente que caiu em boa terra são aqueles que ouviram a palavra com um coração nobre e generoso, a conservam e dão fruto pela sua perseverança».

Da Bíblia sagrada.

O mercado dos horrores

Lembro-me quando na minha inocência infantil, a mais plausível perversão do mundo era um joelho arranhado no recreio, ou a trágica orfandade do Bambi numa sala de cinema. Tive a sorte de nascer num meio estruturado. A vida no entanto, com o tempo, tratou de me desvendar toda uma sorte de macabras ignomínias, toda uma degradante paleta de horrores, sempre em chocante confronto com a grandeza e divina genialidade humana.
A obra do Diabo, definitivamente, não precisa de assessoria mediática. Com a nossa animal apetência para o voyeurismo, o macabro é uma fonte inesgotável de negócio, e um sucesso editorial sempre garantido. Do cinema até à literatura de faca e alguidar, vários são os “suportes” da próspera indústria do horror, da obscenidade. Pelo menos para o nosso anafado e confortável modo de vida, já que as desgraçadas vítimas não devem achar piada nenhuma reverem-se nas suas rotineiras fatalidades.
Mas como em matérias de desgraças a realidade supera muitas vezes a mais histérica ficção, a Comunicação Social logo se revelou o mais bem sucedido suporte desse "produto". Quanto mais aberrante melhor. Haverá sempre por aí um Homem Elefante ou uma família de tarados para desvendar ao ávido público. No princípio, as notícias “de horror” eram publicadas em desinibidos jornais especializados, como uma espécie de pornografia popular tolerada. Hoje, o eterno filão é explorado despudoradamente e qualquer doentio caso de violência doméstica facilmente ganha estatuto de “tema de fundo” num diário ou semanário de referência: a mãe que serrou os filhos aos bocados, a criança sequestrada pelo vizinho, o "respeitável" economista que afinal é pedófilo, o irmão que esventra o irmão... E o interminável caso Maddie. E à noite, se não me cuido, ainda sou apanhado por um psicólogo no canal de notícias que pretende aconselhar os incautos progenitores como explicar às criancinhas aqueles fenómenos psicossociológicos. Não vão os meninos começar a desconfiar da mãe, recusarem-se ir à mercearia do Sr. Aníbal, ou ao Jardim Zoológico com o tio José.
Sob o liberalíssimo império do mercado, o voyeurismo, a notícia de sangue e a depravação, rende monstruosos dividendos e emprego a muita gente. Nesta lucrativa cultura do pavor, promove-se a perspectiva do moscardo, que desvendará sempre a partícula de excremento na mais idílica paisagem.
Sem discernimento ou sentido crítico para optar com liberdade, uma enorme plateia, alienada, assiste impávida ao degradante espectáculo diário. Com o tempo, mudarão os protagonistas desta hedionda telenovela, um reality show da miséria humana. Até que todos acreditem mesmo que o mundo é afinal uma enorme e depravada pocilga, e que tudo o resto não é mais do que uma gigantesca conspiração para nos fazer acreditar que vale a pena sermos melhores, amarmos mais e sermos felizes.

Allez Sporting

O inquérito do Corta-Fitas sobre as públicas expectativas para o campeonato de futebol doméstico iniciado recentemente, obteve imenso sucesso, com 778 participações. A vitória final foi do Sporting Clube de Portugal, como é de bom tom suceder nesta "casa" de lagartos ferrenhos. Foi à tangente, mas não bastou a vontade dos seis (dezoito?) milhões de lampiões. Confirma-se que o tamanho não é o importante.

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