Ontem, com as gargantas arranhadas, caras bronzeadas e ligeiramente molhados dos aguaceiros, regressámos felizes do Jamor. Com o coração acelerado, ainda parámos para umas farturas quentinhas, oleadas em açúcar e canela. O maralhal dispersava devagar, mais uma bifana e mais uma cerveja pró caminho, entre um cântico rouco e uma provocação aos rivais; o comboio ainda podia esperar por mais uns minutos de festa.
No Estádio Nacional apanha-se chuva, apanha-se sol e toda a sorte de intempéries ou imprevistos. No Estádio Nacional, à moda antiga, os sanitários são atrás de cada árvore, atrás de cada cabeço, entre os fumos das grelhas, a cheirar a febras e a fritos. No Estádio Jamor, à maneira dos grandes jogos de antigamente, entramos em fila indiana, devagarinho e apertados entre empurrões e desagravos, grosseiros ou bem humorados. Se não acontecer nenhuma desgraça, tudo corre bem. No Estádio Nacional só se joga à luz do dia, de preferência na primavera sob um esplendoroso verde natural.
As memórias que guardo do Jamor são diversas e quase sempre felizes. Em pequeno, no final dos anos sessenta, na Escola da Câmara éramos todos convocados para ensaiar o sarau para o Sr. Almirante. Sob a supervisão dum monitor, impecavelmente equipados de calções e camisa branca, preparávamos ordeiramente o Dia da Raça, orgulhosa festa republicana de então. A viagem era feita em autocarros da Carris e era o delírio da pequenada: “senhor chofer, por favor, ponha o pé no ‘celerador”; e por aí a fora. Mais tarde, no inicio dos anos 70, com Alvalade interditado uma temporada, o Sporting fez do Estádio do Jamor a sua casa provisória. Nesse tempo os jogos eram à tarde, a lotação era flexível, e assistíamos ao espectáculo sentados nos degraus de pedra. Havia uns espectadores mais sensíveis que alugavam uma almofada: “Olha a almofadinha... a cinco tostões” ...que era costume serem atiradas pró campo no fim do jogo. As coisas de que me lembro!
Hoje, nos modernos estádios, entramos de carro para o parque de estacionamento, passamos o cartão no torniquete e subimos de elevador para o nosso cómodo e seguro lugar. Comem-se hambúrgueres de marca ou pita shoarma, tudo aprovado pela ASAE, e os patrocinadores encarregam-se da animação, com passatempos iguais ao do estádio ali do lado. Mudam só as cores e os dizeres, tudo é de plástico higiénico e previsível, a bem da segurança e das emoções controladas. Recostados em cadeiras ergonómicas assistimos comodamente ao jogo e qualquer dia podemos “pôr pausa” para ir à casa de banho ou fazer um telefonema. Mas na bancada podemos saltar e cantar, “até morrer, Sporting allez” que “quem não salta, é lampião”... e “Só eu sei... porque não fico em casa!”. Em compensação, hoje em dia levamos as crianças sem preocupação, e encontram-se cada vez mais mulheres e cada vez mais bonitas nas bancadas.
Confesso que gostava que a final da Taça se mantivesse no Jamor, assim mesmo como é hoje. Para poder viver com os meus filhos, que são da geração I Pod, uma festa espontânea e popular. Um ambiente castiço de feira e de festa, com genuínos indígenas e forasteiros, mais a Maria e a merenda. Futebol emoção, com picadas de abelhas, apertos e outros imprevistos, além do pão com chouriço e vinho à pressão. E que mal tem isso?