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João Távora

Viagem ao purgatório

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"Alentejo Prometido” de Henrique Raposo, autor conhecido pelas suas crónicas do Expresso, é o mais recente livro da colecção “Retratos” da Fundação Francisco Manuel dos Santos, que adquiri há dias junto à caixa dum supermercado Pingo Doce. Vender livros no supermercado é como levar o conhecimento para o átrio dos gentios da ilustração. Pela minha parte, creio que haverá mais alegria no Céu com uma criatura convertida à leitura, do que com noventa e nove intelectuais que leiam mais um livro. E a propósito, há um forte traço de estilo pop na escrita séria deste escritor.

"Os alentejanos não escolhiam a vida: sofriam-na", refere a determinada altura Henrique Raposo, a meio da “viagem” que neste livro empreende pela sua genealogia geográfica, social e pessoal, num relato impiedoso e às vezes brutal, mas sem a mácula do ressentimento (que é sentimento repisado e acicatado) como é seu timbre. A narrativa começa num buliçoso casamento católico na igreja de S. Domingos, um reencontro com os seus parentes e família alargada, e no festim que se segue no concelho de Santiago do Cacém, precisamente em Foros de Pouca Sorte, a aldeia da família. O nome do lugar é em si uma metáfora cruelmente óbvia, sobre um Alentejo inóspito, sem lei, que um dia foi abandonado pelo Criador a uns quantos desvalidos pioneiros, salteadores, bastardos e libertinos, que em desespero o “colonizaram” ainda durante o século XX. Trata-se de uma realidade sociológica pouco visitada, para lá da costumeira narrativa panfletária da luta de classes, narrada tantas vezes à imagem do cliché da própria paisagem alentejana; bárbara e inquietante, psicótica - como naquele ponto em que Henrique Raposo relembra a estrada que separa a também familiar aldeia de Bicos de Alvalade, uma gigantesca recta de 18 km, que em criança o autor empreendeu atravessar por várias vezes de bicicleta e da qual sempre desistiu ao chegar ao cruzamento para a povoação de Fornalhas acometido pelo pavor: “Pedalava, pedalava, a paisagem não mudava, sentia-me como um ratinho dentro de uma roda, era sempre o mesmo fio de alcatrão rodeado do mesmo conjunto uniforme de sobreiros sem um único rasto humano”.

Um Alentejo de cujo legado Henrique Raposo se demarca, afirmando-se “rafeiro, mestiço, bastardo de solo. (…) Não tenho nem terei terra. Não pertenço.” Mas há algo de paradoxal nessa rejeição, e o impulso que leva o autor a empreender este “confronto com as suas raízes”, fazer-se literalmente à estrada na companhia do Pai e com a Mãe, ao encontro da sua genealogia que não renega - antes abraça - como que numa atitude de libertação. Talvez reflexo da procura dum certo sentido “religioso” – no sentido de ligação - que possuem algumas almas aristocráticas, ligação que Henrique tanto se esforça por rejeitar, como que revoltado, em vários pontos da narrativa.
E depois há o suicídio do “tio Jacintinho, o grande detonador deste livro”; e o aterrador fenómeno do suicídio alentejano, (de 45 a 50 por 100 mil habitantes), que ultrapassa a marca da Lituânia, líder mundial na modalidade, com 42 por 100 mil habitantes. Esta é uma terra estranha que foi-se humanizando, cedendo à civilização; e uma imagem disso é, uma vez mais, o casamento do seu primo que, caótico ou não, reúne dentro de uma igreja várias gerações de primos e tios, que se perfilam diante duma máquina fotográfica para perpetuar o encontro (um ritual que simboliza o cuidado de uns pelos outros). Parafraseando o autor, "Isto significa que os alentejanos só podem ter esperança no futuro".
E não, Henrique; nem sempre os palavrões são sinal de cumplicidade. A partilha de silêncios, essa sim, é a última fronteira da amizade – silêncios que, como bem dizes, os alentejanos praticam como poucos, nos alpendres dos cafés. Um desprendimento monástico diverso da desconfiança. E depois, bem-feitas as contas, se não assentirmos a transcendência, não estaremos todos; alentejanos, minhotos ou lisboetas, tragicamente sós neste estranho e equívoco fenómeno que é existir?

Tire a mãe da boca *


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É curioso como, a respeito do hediondo filicídio da praia de Caxias, na desesperada busca de explicações simplistas e bodes expiatórios que aliviem consciências, de forma acrítica o Estado surja explicita ou implicitamente, como panaceia para todos males deste mundo e do outro. Ora acontece que Estado assim idealizado está condenado a um rotundo fracasso porque falhará sempre nas desmedidas obrigações e expectativas nele depositadas, por mais recursos legislativos, humanos e materiais que lhe sejam concedidos. Além das mais obscuras perversões humanas serem muitas vezes insondáveis, apenas uma rede social muito fina pode valer na prevenção destes fenómenos. Ou seja, só com a estreita sobreposição dos vários mosaicos de comunidades bem coesas, começando pela família natural e passando pelas empresas, associações, clubes e paróquias é possível uma rede de afectos em relação para uma profilaxia mais eficaz e responsabilizadora. Toda uma diversidade de organismos cuja devastação o Estado vem promovendo metodicamente ao longo das últimas décadas. Um Estado que se quis no lugar da religião e no lugar das pessoas infantilizadas, para delas se alimentar e auto-justificar.

 

* "Tire a Mãe da Boca” é o título de um ensaio e de um antigo programa radiofónico da autoria de João de Sousa Monteiro.

Chapéus (já não) há muitos

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Há ícones que custam ver desaparecer na voragem do “progresso”. Um deles é o anacrónico chapéu do Bobbie - o tradicional polícia inglês - que ainda podemos ver a uso na prodigiosa série policial britânica "Inspector Morse" por estes dias em reposição na Fox Crime. A não perder.

Um d' Os melhores golos do Sporting

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O golo de que vos venho falar foi marcado em Março de 1974 por Hector Yazalde (Buenos Aires, 29 de Maio de 1946 - Buenos Aires, 18 de Junho de 1997), o primeiro de um desafio que o Sporting viria a perder em Alvalade por 5 – 3 naquele que foi o derby mais antigo de que tenho memória de presenciar ao vivo, para mais acontecido numa gloriosa época em que o Sporting se sagraria campeão nacional. Escolho este porque é da autoria de uma das maiores glórias leoninas de sempre que convém relevar mais e mais vezes contra o esquecimento, mas também pela forma acrobática como foi marcado - ainda hoje o tenho gravado na minha retina. Acontece que o presenciei de uma perspectiva privilegiada sobre a grande área Benfica na primeira parte. Nesse Domingo eu acompanhava o meu Tio Manel excepcionalmente em “Dia de Clube” – ocasião em que todo o público, sócios ou simples adeptos, tinham que adquirir ingresso pago, numa época louca em que no Estádio José de Alvalade cabia sempre mais um espectador. O ambiente resultava electrizante, como que explosivo.
Dizem que golos acrobáticos como este só podem acontecer quando facilitados pela defesa adversária, mas o que é facto é que, sem a facilidade dos dias de hoje de rever uma jogada de vários ângulos repetidamente durante a semana seguinte, eu nunca mais me esqueci daquele cabeceamento em voo planante para projectar a bola para o fundo da baliza de José Henriques - sem dúvida um golo de rara beleza que levantou todo o Estádio em imensa alegria (no vídeo ao minuto 1,24). O jogo, esse, que o Sporting viria a perder, foi para mim uma lição cabal da mística que possui um embate entre os dois vizinhos da 2ª Circular.
Quanto ao saudoso Yazalde que foi meu herói de menino, nessa época viria a conquistar a Bota de Ouro com 46 golos marcados, facto que ainda hoje constitui uma das maiores marcas desse prestigiado troféu europeu.

Imperdoável

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Quando o irmão de António Costa, o director do semanário de referência do regime, afirma na sua coluna semanal esperar "que nos esteja a escapar alguma coisa", tal é um terrível sinal quanto aquilo que aparenta ser um jogo de roleta russa do Governo para chantagear Bruxelas. O susto transforma-se em terror quando ouvimos na TV o insuspeito (?) Paulo Trigo Pereira, economista da bancada socialista, afirmar que o esboço do OE na realidade não é do PS, mas resulta das imposições da extrema-esquerda antieuropeia de que depende o executivo. Assim se confirma que a “geringonça”, para gáudio das fanáticas claques comunistas e bloquistas, se encaminha descontrolada contra a pesada parede da realidade. De facto, quando a agência DBRS admite cortar o ‘rating’ de Portugal, e com os alertas de entidades como a UTAO, o Commerzbank, a S&P, a Fitch, a Moody's e a Comissão Europeia, resta-nos esperar que nos esteja a “escapar alguma coisa”. Caso contrário estaremos a assistir ao suicídio do Partido Socialista na dimensão e importância com que nos habituámos a conhecê-lo. Considerando aquilo que os portugueses irão penar, isso até será o menos importante.

 

Publicado originalmente no Diário Económico