Sexta-feira Santa para os cristãos é tempo de oração, de penitência e introspecção. Se com Jesus partilhámos quarenta dias no deserto, hoje com Ele nos dispomos mais logo a padecer na Via Sacra, um exercício espiritual e físico que se faz revivendo o trajecto seguido por Jesus carregando a cruz, que vai do Pretório até o Calvário no caminho da crucificação. Eu todos os anos participo nesse ritual, juntando-me às orações das gentes do Vale de Acór – instituição católica da margem sul que há mais de 25 anos abriga e trata toxicodependentes - numa inspiradora procissão que serpenteia pelas ruas do Bairro do Pica-Pau Amarelo em direcção à Igreja Matriz do Monte da Caparica. Esta é uma caminhada densa que cada um faz entregando a sua História, as suas angústias, as suas faltas e desejos. No final, já noite escura, prostrados perante Jesus Cristo humilhado, vilipendiado, crucificado e morto num banho de dor lancinante, podemos recordar o seu deseperado apelo: “Meu Deus, meu Deus porque me abandonaste?" eco de uma solidão tão profundamente humana. Nascera assim como o mais pobre dos homens trinta anos antes em Belém, aquecido pelos animais numa manjedoura e reverenciado por pobres pastores.
Acontece que é também na rendição a um destino ou verdade que se esconde um singular atalho de libertação. Quando paramos de lutar contra os nossos medos e dores, acumulados até à exaustão com os ferimentos duma fuga interminável que perdeu sentido e direcção. Para nos encontrarmos em descanso na profundidade da nossa mais recôndita consciência, numa entrega incondicional ao Criador. “Nas tuas mãos, entrego o meu espírito”. Parece-me que chegamos à maturidade quando descobrimos que é este desprendimento a única saída dos imensos becos que edificamos a cada dia. Que não somos donos do nosso destino, e que só assim actua em nós o perdão redentor que nos vai devolver a vida, a esperança, um amanhecer, um Homem que se renova. O homem novo que se liberta do sepulcro em que se deixou enclausurar, claustrofóbico, egocêntrico, confundido.
A penitência é rejeitada pela modernidade que renega a culpa e o sofrimento, e promove o orgulho, a ilusão da auto-suficiência e do "amor próprio", a fuga para a frente. Sem dar conta que o mal não é um fenómeno exterior a cada um de nós, que a libertação do Homem é um caminho pessoal na aceitação de si próprio inteiro, com todas os falhas, feridas e muita lama nos pés. O mundo seria bem melhor se todos conseguíssemos ressuscitar no Domingo da Páscoa do Senhor. Coisa que não é possível sem a Sexta-feira Santa.