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João Távora

Sobre o sentido humano e cristão da sexualidade

Quando em 1970, em plena revolução sexual o Padre Henri Caffarel, fundador das Equipas de Casais de Nossa Senhora (um movimento católico de espiritualidade e catequese conjugal) planeava uma audiência no Vaticano e propôs ao Papa Paulo VI um discurso sobre “o sentido humano e cristão da sexualidade”, para o qual concebera com o seu grupo de casais um documento de mais de trinta páginas, a resposta obtida de Sua Santidade foi de que “não poderia aceder ao seu desejo por não estar a questão suficientemente amadurecida”.

Se este pequeno episódio é sintomático das dificuldades que a Igreja Católica demonstrou ao longo dos tempos em lidar com o tema, a questão que aqui me traz hoje é se a sexualidade humana alguma vez poderá ser um assunto de fácil abordagem. Não será um mero acaso que o fascínio exercido pelo tema seja proporcional ao da sua complexidade, e sabemos como o assunto vende papel e propicia muitos cliques na internet, mais ainda se a abordagem for simplificada com lugares comuns ou reduzida ao prisma da genitalidade, despertando fantasias e apelando ao voyeurismo.

Acontece que a sexualidade humana será sempre um tema extremamente sensível e intrincado, pleno de subjectividades, como que um enigma, sempre sujeito a reserva e constrangimentos, tanto mais que na sua essência reside ao mesmo tempo a mais sublime realização do Homem no reencontro com a sua outra parte, e os instintos mais básicos, de avidez, dominação e de violência. Assim justificam os antropólogos como ao longo da história as sociedades nunca tenham descurado uma forte regulação na implementação de “restrições sensatas” por forma a precaver a propagação de “paixões descontroladas” com enorme potencial de desestruturação das comunidades e dos seus equilíbrios.

Já do ponto de vista da intimidade da pessoa, da sua história na acumulação sucessos e insucessos de experiências afectivas mais ou menos conscientes ou inconscientes, mais ou menos felizes ou traumáticas, condicionarão sempre uma perspectiva inteiramente descomplexada do assunto: a vivência da sexualidade é, para salvaguarda dos equilíbrios de cada pessoa, um território tão delicado e íntimo quanto será naturalmente sujeito a algum recato. Estranhamente – ou não - uma vivência dos afectos submetida a valores éticos, estéticos e espirituais, constitui hoje em dia uma perspectiva obsoleta e esconjurada, em nome da “liberdade individual”.

Mas acontece que, sob o risco duma total incompreensão por parte dessa cultura vigente, profundamente hedonista e individualista, a Igreja não podia continuar a ignorar que as relações amorosas se estabelecem e também se alimentam através duma mistificação positiva do sexo, da expressão dum “egoísmo saudável” – manifestação duma incompletude e de uma estética eminentemente erótica. Se bem que o amor cristão se define essencialmente na capacidade de doação por um bem maior, pela mesma lógica essa entrega só será fecunda na assunção do exercício de receber, no assumir salutar do seu sentimento de incompletude dirigido ao ser amado. Quem como eu tem filhos adolescentes entende bem a carência desta perspectiva talvez mais primária mas profundamente estruturante, e da premência de uma mensagem que encontre eco no Pátio dos Gentios - ou “nas margens”, como lhe chama o Papa Francisco, onde se encontram as pessoas divididas entre a busca dum conforto existencial sólido e o impacto da estética de absoluto individualismo, do “culto do eu” como primeira e última medida de todas as coisas.

Assim, é com satisfação que se verifica que a assunção da dimensão erótica do amor vem sendo assunto desbravado pela hierarquia da Igreja Católica pelo menos desde as catequeses de João Paulo II sobre a Teologia do Corpo, tema posteriormente continuado por Bento XVI na sua encíclica “Deus Caritas Est” diversos documentos. Nesse sentido a Exortação Apostólica "Amoris laetitia" recentemente dado à estampa é uma corajosa abordagem do Papa Francisco ao tema da sexualidade, da expressão humana do Amor em toda a sua complexidade, numa perspectiva do projecto de realização cristã da existência: a busca da plenitude (ou santidade). Num discurso que sobrepõe a misericórdia ao moralismo e em sentido absolutamente contrário à vulgaridade instituída pela adolescentocracia da nossa sociedade de consumo.

 

Publicado originamente no jornal i

Códigos

Ontem de manhã, estacionado o carro perto da escola, quando eu ajudava o meu filhote pequeno a por a mochila (sempre carregada de mais) às costas, ele avisou-me que só a queria com uma alça ao ombro. Apesar de vê-lo todo torcido para andar equilibrado, concedi, porque percebi que era assunto sério. Isso ficou comprovado hoje ao ver a irmã mais velha sair para o liceu nos mesmos preparos, e quando o miúdo pequeno a caminho da escola confirmou-me apontando os exemplos na rua, que a rapaziada agora se divide em dois grupos: os fixes que levam a mochila só num ombro… e os outros

Realidade

Uma prova de provincianismo e mesquinhez é a que vem daqueles que se babam de deleite com uma fotografia da Família Real Britânica e ao mesmo tempo espumam de obscuros ressentimentos perante uma fotografia da Família Real Portuguesa.

Um raio de sol pela manhã

Como acontece muitas vezes pela fresca, esta manhã, terminado o pequeno-almoço, o meu miúdo pequeno veio estender-se na minha cama para aproveitar os últimos minutos enquanto eu me arranjava. Então, atirei efusivo (a ver se ele não adormecia) - Bom dia miúdo! como te está a correr o dia?
- A esta hora ainda não houve tempo de acontecer nada, como um terremoto ou assim - respondeu-me.
Surpreendido com a imaginação, não me deixei ficar e atirei:
- Oh também não é preciso acontecer uma catástrofe, não era bem mais divertido se uns extraterrestres parassem aqui à frente da janela numa grande nave espacial para nos raptarem?”.
Depois de pensar um instante, respondeu-me com o ar desconfiado:
- Ó Pai, mas hoje não é dia de escola?!

Lisboetas e não

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Não, a maioria dos habitantes de Lisboa não são lisboetas. Até podem gostar da cidade um bocadinho como sua, mas não são de cá: têm as raízes noutras paragens, sempre idílicas, que cultivam em visitas periódicas donde chegam como se viessem do paraíso. Na recente apresentação do seu livro Alentejo Prometido — uma pungente declaração de amor às suas origens —, Henrique Raposo lamentou o facto das suas filhas «se estarem a transformar em lisboetas». Foi essa ingratidão que inspirou esta crónica. De facto, como é sobejamente conhecido, a maioria da gente de Lisboa não é lisboeta. Em Lisboa, uma cidade de passagem e acolhimento, a maioria daqueles que nela actuam diariamente não nasceram aí, e boa parte deles recolhe ao fim do dia ou ao fim-de-semana aos seus lugares originários.

Um lisboeta não é, tão-pouco, aquela figura criada pelo imaginário tripeiro de Pinto da Costa ou Rui Moreira, que vive entrincheirado no Terreiro do Paço a conspirar contra a «província», de que se afasta como filho ingrato. O lisboeta que se preze enquanto tal, não tendo de ser necessariamente um «puro-sangue», como eu, terá no mínimo que ter nascido na cidade e já não possuir uma «terra» dos seus ascendentes onde ir baptizar os infantes num fim-de-semana prolongado, ou regressar periodicamente nas férias para reencontrar os seus familiares. Quando era pequeno assisti não poucas vezes a diálogos entre guarda-freios da Carris sobre idas à «terra» tratar das vinhas ou trazer sacas de batatas, mas para um lisboeta de gema, a nostalgia do regresso não o desloca ao Minho ou ao Alentejo, mas lança-o directamente para o vasto mundo imenso que da Torre de Belém se vislumbra oceano adentro. Enquanto isso não se realiza, vai a Sintra com a família visitar a tia velha, e de caminho traz umas queijadas.

Também importa delimitar geograficamente Lisboa até à circunvalação da cidade. Um lisboeta não é de Massamá, Odivelas ou do Estoril aprazível para onde vim morar, mas que sentirei sempre como um certo exílio, ainda que dourado, com a praia quase à porta.

Como é bom de ver, não sobra muita gente a quem chamar lisboeta. Mas esse reduzido número de pessoas tem um traço tão marcado quanto inédito: ama a sua cidade, o seu bairro e as suas ruas com a profundidade intensa dos fadistas e poetas – também eles, não obrigatoriamente lisboetas...

Foi na tropa que entendi a importância da origem geográfica de cada um: no quartel, todos os meus companheiros me perguntavam de onde eu provinha e identificavam-se pela sua terra de nascimento, cujo nome muitas vezes era adoptado como alcunha. Filho, neto e bisneto de lisboetas, também eu fui aí nascido e criado em Campo de Ourique, «a minha aldeia». O meu avô paterno, engenheiro civil, ajudou a construir a igreja de Santo Condestável. Tem um jardim com coreto, um mercado agora muito em voga (a que chamávamos praça), uma escola primária e outra do ciclo (que frequentei), e um odor inconfundível, que respiro com deleite, sempre que lá vou. Irónica, digamos assim, foi a «ascensão» da família do meu pai que me trouxe aquele planalto da cidade: do Palácio de Santos, hoje Embaixada da França (onde os meus bisavôs ainda moraram), à Calçada da Estrela, e depois à Travessa do Patrocínio, onde o meu avô, acabado de casar, se fixou depois de mais de duas décadas exilado pela república, até ao generoso 3.º andar em Campo de Ourique onde cresci, passaram menos de 100 anos – é o que se chama subir na vida!

Em Campo de Ourique, e seu redor, viviam muitos dos meus primos, tios e amigos da escola, e era daí que o autocarro n.º 9 saía para a Avenida da Liberdade, onde viviam os meus outros avós. Ainda conheci e ouvi histórias da minha bisavó Valentina que, na primeira década do século, precocemente viúva, foi ocupar o 1.º Esq.º do prédio 232, a um quarteirão da Rotunda. Da varanda, assistiu ela às escaramuças que nos impuseram a revolução republicana.
Lisboa corre-me nas veias, portanto.

Podemos distinguir um lisboeta na rua pelo seu olhar blasé de quem já viu o outro lado da Lua: normalmente veste com sobriedade, tanto mais que não vai em modas antes delas estarem já bem experimentadas e quase em declínio. No fundo, o lisboeta de Lisboa é filosoficamente um monárquico, descendente de fidalgos arruinados, republicanos desenganados ou anarquistas desiludidos, acalentando sempre orgulho na sua ascendência, seja de fadistas, professores primários, jornalistas ou de modestos lojistas. Desconfiado de grandes aparatos, e principalmente da alegria dos vizinhos que vão e vêm das festas «na terra», dos seus filhos com demasiados piercings e tatuagens e filhas de cabelo azul-eléctrico, têm nos seus genes a secreta certeza de que as revoluções, as suas ou as dos adversários, nunca serviram para nada; que a vida é o que é. Mas o bom lisboeta toma sempre partido e não recusa uma boa discussão de política no café do bairro, e se for necessário cita o seu antepassado de que mais se orgulha.

O lisboeta não esconde o ensejo de um emprego estável, na função pública de preferência, à moda das rendas novecentistas enviadas da província, que lhe permitiam pagar o alfaiate e umas compras num Chiado afrancesado. Gosta de jardins, cafés e esplanadas para ler jornais ou namorar, e conhece os vizinhos com equidistância; é católico, agnóstico ou ateu com a determinação de quem optou em pleno discernimento, que na capital as disputas existenciais têm séculos de discussão, nas cortes, no partido, no clube recreativo, no parlamento e na taberna.

Os lisboetas pronunciam um português mortiço e tendem a omitir as vogais abertas, talvez para poupar energia, talvez por timidez. Distinguem-se dos vizinhos por um entusiasmo reservado, pelo andar mais lento e por um sorriso triste de quem imaginou ter herdado fortunas indivisas dos tetravôs das índias. O lisboeta, para lá das «questões futebolísticas» (às quais já não dá grande valor), não entende o rancor nutrido pelas gentes do Porto, afinal uma cidade bonita e acolhedora — e onde nasceram tantos progenitores de futuros lisboetas.

Depois, há que reconhecer que um lisboeta não se distingue pela sua cor dos olhos ou da pele: há-os com as mais variadas origens e culturas. No entanto, reconheço que há uma ameaça na «consanguinidade» lisboeta. Para não perderem o brilho nos olhos, os alfacinhas deverão abrir-se ao casamento com forasteiros — foi o que fiz. Já os meus filhos cresceram em São João do Estoril e não entendem a mística da grande cidade, que sentem como hostil e suja, e desconfio que a acham tão velha e fora de moda como o Pai, que é um monárquico militante, se atafulha em jornais, livros e discos de vinil e lhes conta histórias de outros mundos. Talvez um dia, por um qualquer acaso, retornem para lá viver e entendam a alma da minha cidade e os tiques deste inveterado lisboeta que também lhes está no sangue.

Acontece que os lisboetas nasceram e cresceram impregnados de história, calcorreiam-na todos os dias através das ruas antigas, passeios puídos, prédios velhos e monumentos históricos com os quais se foram familiarizando diariamente, por osmose. Da rua do Arsenal ao Bairro Alto, das calçadas íngremes da Lapa aos escritórios centenários da baixa pombalina, da igreja de São Domingos à rua de Santa Marta, ao Hospital de S. José, do Largo do Chafariz de Dentro às ruelas de Alfama até à velha Sé de Lisboa, do fatídico Terreiro do Paço (onde mataram o Rei), da inevitável Avenida Almirante Reis que já foi Rainha D. Amélia, do Jardim da Estrela aos do Castelo, o lisboeta corporizou, sem dar por isso, o relativismo do momento, a estreiteza da modernidade e das suas disputas tantas vezes risíveis.

Mesmo habitada por tantos fantasmas, Lisboa tem uma alma extraordinária, um jogo de luz e sombras que é mágico. Com as suas colinas e ventos, renova-se de ar novo e empolgante todos os dias, ampliado pela animação daqueles muitos que chegam e nela se instalam, ou a visitam ocasionalmente.

É com este sangue novo, entusiasmo e muita ilusão que a cidade se reconstrói diariamente das cinzas. Lisboa só é o fim da linha para quem vem do Estoril. 

 

Publicado originalmente no jornal i

Do bom gosto

Perfeitamente descabida é a mais recente polémica armada à volta da proibição por parte do Sporting do uso do vermelho pelos seus atletas, pois como é fácil entender, trata-se de uma norma que vem estabelecer o mais elementar bom gosto na estética leonina. Sobre a junção do encarnado ao verde dizia Fernando Pessoa*: “(...)ser contrário à heráldica e à estética, porque duas cores se justapõem sem intervenção de um metal e porque é a mais feia coisa que se pode inventar em cor. Está ali contudo a alma do republicanismo português – o encarnado do sangue que derramaram e fizeram derramar, o verde da erva de que, por direito mental, devem alimentar-se (...)”.


* “Da República” Editora Ática, Lisboa, 1978

Se não sabe porque é que pergunta?

Maternidade Pro-Mater, Lisboa.jpg

Toda a vida pensei ser natural de São Sebastião da Pedreira por ter nascido na Maternidade Alfredo da Costa como a maioria dos lisboetas. Hoje em visita à minha mãe caí na asneira de confirmar esse dado (a propósito de raízes e geografias familiares), e foi com grande consternação que fiquei a saber que na verdade fui dado à luz na… Avenida da República. Foi no nº 18 onde naquele tempo havia uma maternidade, uma tal de Clínica Promater.
Consola-me o facto da sua denominação até à revolução do 5 de Outubro ter sido Avenida Ressano Garcia. Sim, a toponímia moderna é um instrumento de propaganda política.
 
Fotografia de João Goulart in Arquivo Fotográfico da C.M.L.

Acalmação 2.0

Tenho a impressão que vivemos uma espécie de nova "acalmação" como a que foi tentada pelos partidos e pela coroa em desespero após o regicídio de 1908. Então, a tentativa durou dois anos até chegar a revolução e o caos com os republicanos. A nova "aclamação" apadrinhada por Belém e pela CGTP também não sobreviverá muito tempo à realidade: um Orçamento de Estado inviável que quer agradar a Deus e ao Diabo, um Plano Nacional de Reformas vago e bucólico, um acordo com os lesados do BES que não lhes garante nada, uma economia anémica e uma dívida acima dos 130% do PIB. As coisas são o que são, vivemos em cima de uma bomba relógio.