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João Távora

Estantes vazias

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Vivemos tempos confusos por estes dias não só na política. Acho que podemos afirmar que experimentamos quase diariamente progressos tecnológicos que alteram de sobremaneira o nosso modo de vida e a percepção da realidade. A sofisticação da computação, a era digital na internet de banda larga, a desmaterialização da informação, a vertiginosa sensação de protagonismo e liberdade por via da auto-edição nas redes sociais, colocam-nos desafios e incógnitas que não deveriamos subestimar. Pela minha parte, o meu profundo apego aos processos analógicos de registo de informação, como o livro, o jornal em papel, a gravação sonora em vinil e noutros suportes físicos, não me impediu de nos últimos 30 anos acompanhar com fascínio a evolução na tecnologia que aqui nos trouxe, pelo que julgo que isso me concede alguma imparcialidade na abordagem que aqui pretendo fazer ao fenómeno da “estante vazia”. 

Se até há bem pouco tempo, a análise duma estante da casa de alguém nos daria impressões precisas sobre o seu perfil sociocultural, na linha do “diz-me o que lês, dir-te-ei quem és”, a tendência cada vez mais consolidada para a desmaterialização de bens culturais como o livro e o disco em informação digital invalidam hoje em dia essa forma de interpretação: chamemos-lhe o fenómeno das “estantes vazias” que no meu entendimento contêm outras ameaças bem menos fúteis do que essa. Se é verdade que na actualidade um pequeno dispositivo pode conter em si uma grande biblioteca com toda a sorte de obras literárias, além de intermináveis horas de registos  musicais de toda o género com razoável qualidade na reprodução, o facto é que esta forma de consumo consolidou uma relação, já de si pessoal, numa dinâmica atomizadora da nossa sociedade - as pessoas não ficaram mais livres, apenas mais sós e desorientadas nas suas escolhas.
Daí que as prateleiras vazias, fruto duma mudança radical no consumo destes bens (cujo valor de facto reside no conteúdo e não no suporte), signifiquem uma quebra numa antiga tradição em que essa informação era legada graças à sua forma física. Ela estava disponível e palpável nos diversos ambientes em que todos crescemos e formámos a nossa personalidade. Por sorte minha cresci e desenvolvi-me rodeado de livros, jornais e revistas, que folheava atraido pela curiosidade, tomando assim contacto com realidades improváveis; já para não falar da muito boa música, cujo manuseamento dos discos (com capas atraentes e informativas) e a sua audição mais ou menos voluntária (o gira-discos ecoava pela casa fora) me influenciou o gosto e sofisticação de ouvinte.

Foi assim que os meus filhos cresceram, também eles rodeados de estantes cheias, discos, livros e jornais entreabertos que usufruíram nos espaços comuns da casa onde também partilhámos filmes, alguns dos quais estou certo permanecerão sempre como referência para eles. Como se reproduzirá este processo de transmissão de valores (porque é disso que se trata) nestes tempos de individualismo radical dos auscultadores e do ‘smartphone’ em que cada um constrói a sua biblioteca ou playlist – a lógica da ‘playlist’ no streaming digital é em si um tratado - num aparelho de bolso é para mim um enigma.

É por isto que eu receio que o fenómeno das estantes vazias deixará de denunciar uma pobreza cultural para significar um retrocesso civilizacional. Ou estarei enganado?

Crónica inspirada no artigo "Our (Bare) Shelves, Our Selves" de Teddy Wayne e publicada originalmente aqui

Um artolas e duas geringonças

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Na verdade o fenómeno António Costa comprovou superar tudo o que se pudesse imaginar há uns anos. Estávamos longe de imaginar que esta figura anafada de manhoso bonacheirão que numa golpada submeteu o Largo do Rato para ser derrotado epicamente nas eleições legislativas de Outubro, chegasse a primeiro-ministro, suportado por comunistas e trotskistas mal resolvidos com a promessa impossível de acabar com a austeridade.

O facto é que como o dinheiro ainda não nasce nas paredes das caixas do multibanco e o optimismo como o pessimismo são formas de irrealismo, de reversão em reversão, estamos condenados a empobrecer gota a gota enquanto a Europa – por estes dias também uma periclitante geringonça - for condescendendo (por boas ou más razões) ao delírio que por cá grassa.
Acontece que o verdadeiro problema não reside em mais duas ou menos duas décimas de pontos percentuais do défice tolerados ou não por Bruxelas, mas na nossa soberania que há muito se encontra hipotecada por uma dívida descumunal, e na nossa economia anémica cujo modelo tarda em renovar-se. E os sinais que são transmitidos a favor de um Estado insaciável e omnipresente que a todos quer controlar e que de si todos dependam, seja para um emprego de 35 horas, uma esmola, um frete ou um bom negócio.
Bom seria que António Costa, na condução desta geringonça que desanda, ronca e estrebucha amarrada aos compromissos com a obscura agenda dos partidos da esquerda radical, não se esquecesse do papel histórico que um dia o seu partido assumiu, aliado à Igreja e aos partidos da direita, para libertar o país da vertigem do socialismo revolucionário – enfim da tirania e da miséria.
Uma palavra final a propósito da prenunciada injecção de mais 4 mil milhões para recapitalização da Caixa Geral de Depósitos - creio que nos falta ainda ouvir a Catarina e o Jerónimo a clamar pela sua nacionalização. Entretanto, investigue-se para onde foi o dinheiro desaparecido.

 

Publicado originalmente no Diário Económico.

Para lá do Marão...

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O projecto do Túnel do Marão, que será amanhã inaugurado, constitui por si uma parábola sobre a forma de desgoverno socialista em que os dinheiros públicos são feijões para jogar à batota com os amigos. Lançada a obra em 2008 pelo Governo Sócrates na forma de uma parceria público privada, nela se previa um investimento inicial de 458 milhões de euros, dos quais 341 milhões destinados à construção. Chegados a 2011 com o País intervencionado pelos credores e sem financiamento, o governo Passos Coelho negoceia e consegue o resgate da obra em 2013 - um facto inédito em Portugal - e em Fevereiro de 2014 o governo lançou três concursos públicos para a conclusão do empreendimento. O resultado foi a viabilização desta ambiciosa obra com poupanças de mais de mil milhões de euros não só na renegociação das PPPs mas também com a execução das obras. É por isto que, se José Sócrates e António Costa tivessem um pingo de vergonha na cara, amanhã ficavam recatadamente em casa a ver a inauguração pela TV. Quanto ao mais, Passos Coelho faz muito bem evitar certas companhias. 

Tio Milha

Ontem nas cerimónias fúnebres de um parente meu muito querido, um transeunte anónimo comentava que o finado devia ser alguém muito famoso. Acontece que eram largas as centenas e centenas de amigos e familiares que se apertavam na Basílica da Estrela para uma última homenagem. Para quem trabalha em comunicação como eu, actividade que visa a potenciação de notoriedade e reputação de pessoas ou marcas, este fenómeno a que chamo de “notoriedade orgânica” não deixa de dar que pensar. Acontece que há pessoas que ao longo da sua vida têm o dom construir um largo rasto de sólidas relações sociais, porque feitas de amor verdadeiro. Escuso-me explicar como o amor verdadeiro nada tem a ver com romance, mas antes com dádiva de si aos outros. Porque a vida realiza-se mais plena na medida em que fazemos bem àqueles com quem nos cruzamos. Não me constando que tenha merecido manchetes ou sido notícia de jornais, estou em crer que “a fama” alcançada por este meu parente é aquela que realmente conta na construção de um mundo mais habitável. O seu legado, construido ao longo duma extensa vida, uma história de trabalho, coerência e bondade, está bem espelhada numa das mais bonitas e fecundas famílias que é a sua, uma casa em que eu tive a Graça de ter sido sempre tão bem acolhido.

Em memória de D. Miguel de Almeida 1923 - 2016. Deus o tenha em sua infinita Graça.

Isto vai acabar mal...

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António Costa soube sempre ao que vinha quando cavalgando a sua geringonça destronou a coligação vencedora das eleições legislativas de Outubro passado. Acontece que contra todas as previsões e num ambiente de pré-guerra civil, o País fora resgatado pelo governo PSD e CDS da iminente falência protagonizada por uma governação socialista de um modelo económico falhado e decadente, dependente do Estado e profundamente condicionado pela adesão a uma moeda “estrangeira”. Estancado o deficit e reconquistada a credibilidade de Portugal perante os mercados, iniciadas algumas tímidas mas dolorosas reformas, permaneciam por resolver a crise de dívida privada escondida nos bancos e a lenta transformação da economia portuguesa fundada em serviços e na construção civil, asfixiada por impostos.
Assim chegamos ao actual “estado da arte”, com um governo liderado por um partido derrotado nas eleições que por força da sua fraqueza política se vê na contingência de substituir a governação do País pela gestão do curtíssimo prazo, com manobras dilatórias e uma agenda esquerdista para o entretenimento das clientelas de que a sua sobrevivência depende. Entretanto a resolução de todas as ameaças e debilidades estruturais que ensombram a nossa economia permanecem sem qualquer abordagem séria.
A impressão que fica é que vivemos nestes dias perigosos uma espécie de nova "acalmação" como a que foi tentada pelos partidos e pela coroa em desespero após o regicídio de 1908. Então, a tentativa durou dois anos até chegar a revolução e o caos dos republicanos. A nova "aclamação", apadrinhada por Belém e pela CGTP, não sobreviverá muito tempo à realidade: as coisas são o que são, vivemos em cima de uma bomba relógio.

 

Publicado originalmente no Diário Económico.