Esta é uma história de tempos felizes. Quando logo a seguir ao 25 de Abril eu arriscava dar uns passos para mais longe do refúgio familiar, com um espírito inocente e deslumbrado com as promessas da vida ao virar da esquina e ainda distante de perturbações existenciais que prenunciam a adolescência. Curioso como é mais fácil reavivar memórias luminosas quando estas estão ligadas a uma casa, a um determinado sítio. E todos sabemos que a saudade vive nas casas onde fomos amados, cheias dos nossos fantasmas, que às vezes somos nós próprios noutras eras, e que só as abandonam quando são demolidas ou nós as abandonamos pela morte separados.
A casa de Agath V. Radey, de quem por estes dias se celebram cem anos do nascimento, apesar da modéstia e degradação, permanece com uma estranha dignidade, se não altivez, ali a dois passos da Praia dos Pescadores na Baía de Cascais, numa ruela de pedra calçada que por ironia do destino se chama Rua da Saudade. O mesmo destino que me faria voltar à Vila de Cascais onde passei tempos soalheiros num estúdio em frente ao Teatro Gil Vicente antes de casar. O mesmo destino que me fez abrir o escritório não muito longe da Avenida Emídio Navarro, a dois passos da Parada dos nossos saudosos reis, na casa que viu nascer a minha mãe, onde os meus avós passavam a longa época estival à procura de uma bonança mais salubre que a ebulição cosmopolita da Avenida da Liberdade. Todos tomamos uma geografia em legado que redesenhamos pela vida fora.
Agath V. Radey era Princesa de Auersperg e nasceu em Goldegg no Estado da Baixa Áustria em 1916. Chegou a Cascais, desta feita para ficar, com o seu filho Joko, em 1948, depois se ter deixado seduzir anos antes por esta vila. Aqui, no extremo ocidental da Europa, nesta terra de paz e segurança, decidiu sublimar os horrores que presenciara, escapando às ruínas deixadas pela II Guerra Mundial, que levara para o céu o seu marido, Rudolf Georg von Radey, morto pelo exército soviético.
A casa para onde veio morar tinha um pequeno quintal, e nele viviam muitos gatos que falavam com a Tia Ágata, que os tratava com imenso carinho, talvez aquele que já não fosse possível dar ao seu filho, já homem feito, que se escondia, reservado, depois do trabalho, numa sala de música que albergava a maior colecção de discos de música clássica que alguma vez eu vi. Já na altura me fascinavam os sistemas de som, e era com alguma frustração que me sentia indesejado naquele pequeno templo de melomania. A Tia Ágata tinha uma silhueta magra e amarrotada pela vida, e eu pressentia-lhe impressos nos olhos silenciosos que me observavam ao jantar, mil imagens por ela vividas… castelos encantados, como aqueles, magníficos, que se agarram às encostas do Reno, soldados a avançar barulhentos com espingardas na mão, marchas sem rumo de refugiados órfãos das suas pátrias, bombas a cair como chuva impiedosa, suja de lama, de fumo e de pólvora, capaz de submergir as memórias mais felizes. A Tia Ágata era ágil e tinha um sentido prático que me parecia extraordinário: por vezes acompanhava-a ao supermercado Jumbo (uma novidade na época) na sua carrinha Morris Mini de lata cinzenta, consumida como os tachos que se penduravam na parede da cozinha, cheia de gatos interesseiros que me fitavam em alemão.
Não sei como se estabeleceram os laços entre as nossas famílias, mas sei que naquele Verão de 1974, quando em minha casa ainda morava esperança, fui convidado a passar uma temporada naquela residência da Rua da Saudade. Fiquei alojado num pequeno quarto ao lado do sótão onde a Tia Ágata pintava. Lembro-me que os lençóis eram de linho fresco e que da janela se ouviam os pescadores a desafiar o mar e as gaivotas que voltavam da faina com ventos de maresia.
Os dias, então, passava-os na praia com os seus sobrinhos que tinham a minha idade, o Alexandre e a Ágata, que moravam no outro lado da Baía, ao cimo da rua curva, quase ao pé da Igreja da Assunção. A pequena Ágata tinha em comum comigo a curiosidade por todas as marcas, todos os modelos, e potência de todos os carros com que nos cruzávamos nas ruas da vila de Cascais ou que saíam nas revistas da especialidade. E tinha um irresistível charme quando falava com o irmão aquele arrazoado que é para mim a incompreensível língua de Goethe. Os três gostávamos de música pop e aquele Verão ficou-me para sempre ligado às cantigas do disco de Paul McCartney “Band on The Run” que ouvíamos repetidamente. Uma ou outra vez, as noites mornas convidavam-nos à praia dos pescadores e aquelas fizeram-se umas semanas inesquecíveis, feitas de praia e de passeios mágicos, sem grande história como são sempre os tempos felizes.
De regresso a casa, enquanto o ódio começava a ser gritado em grafitis e vociferado em manifestações pelas ruas da cidade, enquanto as armas se acicatavam bêbedas pelos quartéis, ainda empreendi umas quantas visitas ao Alexandre e à Ágata com paragem obrigatória na Rua da Saudade: a viagem a partir de Alcântara era ainda mais emocionante quando tinha a sorte de arranjar um estratégico lugar sentado em segunda classe. Aproveitava para me perder no imobilismo do horizonte, que tanto contrastava com a velocidade a que a costa se sumia, e para ver o rio Tejo fugir mansamente para Lisboa pouco antes da carruagem mergulhar nas águas, ali antes de se chegar ao Bugio. Claro que os comboios de agora já não têm 2ª Classe e limitam-se a passar em seco rente à rebentação. Chegado ao fim da linha, atravessava ansioso as ruelas emaranhadas de Cascais, aproveitando com os meus amigos o dia que se toldava cada vez mais depressa.
Vieram as primeiras chuvas, as rotinas das aulas começaram e Cascais tornou-se uma terra cada vez mais longínqua, eu já só lá chegava por cartas de letra bem desenhada, e os tempos escureciam enquanto os cravos murchavam nas libertárias G3 e o poder entornava-se na rua, excitada, assustada e a espumar de raiva. Antes de chegar o Verão soube da partida da pequena Ágata e do Alexandre com os pais para a Áustria. Gato escaldado de água fria tem medo.
(Continua aqui)