Poucos climas há tão encantadores como o de Portugal. O Inverno é neste país menos áspero que nos países do norte, mesmo menos áspero que a região central de França. A neve só cai nos cumes dos montes. Gozam-se dias admiráveis que rivalizam com os nossos mais amenos dias de Primavera. No Verão, a temperatura é muito mais elevada do que em Espanha. E passam-se aí às vezes calores de abrasar, mal moderados pelos ventos quentes do Oceano Atlântico; mas encontram-se ali tantos sítios maravilhosos, onde reina uma Primavera eterna.
Maria Rattazzi,
Portugal de Relance,
1880
À hora que escrevo esta crónica deve estar o estimado leitor em casa, de cócoras debaixo da mesa de jantar para se proteger dos raios UV, com uma garrafa de água gelada numa mão uma peça de fruta fresca na outra, com ar condicionado no máximo e a avó fechada no WC dentro de uma banheira de água fria, enquanto a televisão sintonizada num canal de notícias emite alertas vermelhos e o repórter questiona os incautos transeuntes sobre que acham do onda de calor - todos temos direito à nossa importante opinião. A Comunicação Social há uma semana antecipa em parangonas que com a chegada do mês de agosto chegarão dias de inclemente canícula.
Triste sina esta de ser da geração em que "o tempo" se tornou conversa séria. Tempos houve em que esse era tema de quem não tinha nada para dizer. Aqui chegados, até eu sou bem ensinado e concedo que o assunto é importantíssimo, numa sociedade em que ao Estado deixou de competir a boa governança da coisa pública e em troca de votos se advogou responsável pela felicidade das suas mal-agradecidas gentes - uma causa obviamente perdida. Em boa verdade fomos todos transformados em Princesas da Ervilha, que merecemos ser educados para o nosso bem-estar, com o aconselhamento da periodicidade conveniente para um retemperador copo-d’água e dos benefícios de nos recolhermos numa revigorante sombrinha quando confrontados com temperaturas altas. Bom é saber que entidades oficiais cuidam de nós, venerandos e obrigados. De resto nesta altura do campeonato, ao sol só trabalham os vendedores de bolas de Berlim, alguns operários da construção civil, os agricultores e uns quantos maduros voluntários a montar festivais de Verão e bailaricos de província – a luta de classes é um assunto quase encerrado.
Em tempos que já lá vão era da sabedoria popular que para o bem-estar da família nestes dias tórridos em casa corriam-se as cortinas e fechavam-se gelosias. Bem sei que corriam tempos em que o sol era um parceiro de duvidoso estatuto: todos os homens usavam chapéu e donzela reputada tinha a tez clara, andava de sombrinha, e só ia á praia mediante receita médica. A pele tisnada não era um bom indicador social, mas sim indício da actividade laboral na pesca, construção civil ou na lavoura. De resto eu sou do tempo em que só os estrangeiros e uma certa elite se entretinha a passar o estio nas nossas paradisíacas praias, besuntados de bronzeador (uma mistela gordurosa à base de tintura de iodo) e pomada Caladril em cima das feridas do nariz e das bochechas. Nos anos sessenta, enquanto Sir Paul McCartney e Sir Miguel Sousa Tavares se deleitavam no paraíso virgem Algarvio, em Milfontes no Baixo Alentejo, onde eu assisti à chegada do homem à lua, a praia no Verão era uma extravagância de dúzia-e-meia de famílias veraneantes que os autóctones exploravam legitimamente e que só acediam ao Domingo para piqueniques tribais, todos vestidos de cima a baixo, homens de chapéu e as senhoras de lenço na cabeça e as viúvas de preto, a distribuírem caldeirada de um grande tacho para a prole de pele alva até aos braços. A democracia demorou a chegar aos banhos.
Voltando ao tema quente da actualidade, quer-me parecer que os portugueses da metrópole (uns mais que outros, bem se vê…) sempre tiveram de enfrentar períodos tórridos durante o Verão, como dizia Maria Rattazzi nos anos 80 do Século XIX. Há que colocar a questão sob perspectiva e sem alarmismo. A minha memória não chega tão longe, mas lembro-me na infância de umas tardes tórridas no 3º andar de Campo d’ Ourique que perturbavam particularmente o génio do volumoso Senhor Marquês, meu saudoso Pai. Recordo-me como arfava nesses dias abrigando-se a escrever fanaticamente atrás de uma ventoinha que, de caminho desaustinava e sublevava também as folhas de papel manuscritas, por entre golos de água fresca que sofregamente consumia de uma garrafa de vidro para seu uso exclusivo. E lembro-me de um célebre dia 13 de Junho, julgo que em 1980, num "Passeio de Domingo" do Centro Nacional de Cultura, em que perto de 100 associados navegaram pelo Tejo acima numa barcaça dos fuzileiros, sob temperaturas perto dos 50º sem uma sombra digna desse nome até Escaroupim, perto de Salvaterra de Magos, onde pernoitámos em tendas cedidas pela marinha – íamos morrendo todos. E do saboroso que pode se tornar uma cerveja morna, já que a excursão tinha o patrocínio da Cerveja Sagres "Europa", novidade na altura em que a CEE era um mito exótico e mobilizador.
Como se verifica pelo atrás descrito, o Tempo pode ser afinal um bom motivo de conversa. E se não tivermos assuntos sérios com que nos preocuparmos, uns dias com dois graus em Lisboa, um nevão em Vila Real de Trás os Montes, ou acima dos trinta na Capital abrem noticiários e convidam-se meteorologistas e sociólogos a dissertar sobre as alterações climáticas e o fim eminente do Mundo como o conhecemos. Nada que por estes dias umas Ameijoas à Bulhão Pato e uma garrafa de Vinho Verde gelado não resolvam. E depois, como nos está prometido um dérbi para a 3ª jornada do campeonato no final de Agosto, descansem os meus amigos animação não nos vai faltar. Como dizem os ingleses, “Stick to the weather”!
Nota: agradeço ao Eurico de Barros a inspiração para a ilustração desta crónica.