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Conto publicado pelo meu pai, Luís de Lancastre e Távora na revista Alvorecer, "Revista académica de cultura" do Porto em 1955 quando tinha 18 anos. Uma homenagem em sua memória no dia em que passam 26 anos sobre a sua morte.
Corria o ano 63 da nossa era. Uma multidão impaciente acorria aos grandes portões de mármore do circo de Calígula. O som das trombetas das legiões e o vozear daquelas 50 000 pessoas unia-se aos rugidos das feras.
Festejava-se naquele dia a volta triunfal do “Quaestor Classicus” Cornelius Narcellini, que na sua veloz birreme, alcançara estrondosa vitória esmagando os pecadores da ilha de Tibre, revoltados contra o jugo de Roma. Era pois em honra de Cornelius Narcellini, o novo favorito do Imperador, que aquele grandioso espetáculo fora organizado. Havia combates de feras, e dizia-se até que o gladiador gaulês, o gigantesco Lúcio, combateria. Porém era quase impossível que o seu proprietário, sabendo que a recompensa do vencedor seria a liberdade e 10 000 “asses” deixasse o gaulês combater... Porque ele sabia, como todos sabiam, que Lúcio era invencível e não era muito agradável perder assim um lutador de tal qualidade. Contudo havia esperança...
Era estranho o aspeto daquela imensa multidão. Para alem das tribunas de Caesar, apinhados de grandes senhores, de generais e centuriões, nas suas túnicas e cintilantes couraças de prata lavrada; para alem do recinto reservado às “vestais” que, vestidas com as suas alvas túnicas de seda, lembravam um baixo relevo de fídeas, para além... contrastando, viam-se as bancadas do povo; desse povo andrajoso que se mantinha indiferente perante os espectáculos de sangue, como aquele que ia começar. Era formado de todos os géneros, desde os miseráveis de mais reles escória dos sombrios bairros pobres, até abastados comerciantes. De tudo ali havia; todos se acotovelavam.
E toda aquela gente discutia e ria, quando as trompas ressoaram e fábula imperial subia ao mastro de honra. Fez-se silêncio. O espetáculo ia começar.
A porta chamada de “Sanavivaria”, abriu-se e, pelo meio do estrondo dos aplausos, entraram na arena os “essendarii”. Estes, logo que os guerreiros saudaram o imperador, foram-se colocar em linha. E de súbito, a uma ordem do chefe do espectáculo, todas as seis parelhas de cavalos partiram como flechas em direção à meta.
A corrida foi breve mas sangrenta. Apenas um dos carros venceu, não obstante o seu ocupante estar moribundo, com duas lanças cravadas no ventre, e os cavalos cobertos de pó e sangue.
Durante alguns minutos, enquanto que os cadáveres e despojos e despojos eram retirados da arena pela porta “Libirina” os espetadores trocaram comentários, bebendo vinho, e devorando os farnéis, esperando pelo seguinte número.
De súbito uma nova correu célere: Lúcio, o gaulês, também combateria.
Havia sido visto por um dos escravos “Plutões”, “Lúcio, o gaulês, combateria”... “Lúcio, o gaulês, combateria”... e o murmúrio aumentava num impaciente alvoroço... “Lúcio, o gaulês” combateria...
Milhares de olhos fitavam a porta Sanavivaria e viram-na de repente a abrir-se...
Imediatamente espantosa ovação atroou os ares. Na frente dos gladiadores, todos podiam ver o gigantesco e possante Mirmilão que agradecia os aplausos com a ponta do “gládio”.
Lúcio, o gaulês, avançou e foi-se portar de frente à tribuna das vestais e de costas para a porta Libitina.
Com calma, enfiou o braço esquerdo na pega do escudo de bronze, e seguidamente experimentou o gládio vibrando alguns golpes no ar. Após isto baixou a viseira e esperou.
Enquanto esperava, deu largas à imaginação.
Via-se livre, liberto da escravidão para sempre. A vitória, estava certamente garantida; e quando recebesse os 10 000 “asses” então poderia voltar à pequena aldeia gaulesa... talvez mesmo estivessem ainda vivos os seus pais... mas, pelo menos, seu irmão, esse, provavelmente estaria...
O primeiro adversário do gaulês foi um “reciário” Assírio, atarracado, com uma cabeleira curta e encrespada. Foi o primeiro a atacar que de um salto lançou a rede sobre Lúcio. Este, ágil como um felino, curvou-se e caiu a fundo golpeando o peito do adversário que, levemente ferido, recuou. Como cordas, os seus músculos moviam-se sob a pele morena, formando cordilheiras serpenteantes. De dentes serrados atacou de novo. E foi então que Lúcio operou. Como um relâmpago, cortou as malhas da rede que já o envolvia; aparou a estocada do tridente no escudo e em seguida, depois de simular um ataque de prancha, mudou na trajectória da lâmina do gládio, e por fim mergulho-lhe a ponta na garganta do adversário. O sangue espirrou, um gemido rouco e assírio tombou com a carótida trespassada.
E como o assírio, o reciano egípcio em breve morria às mãos de Lúcio.
Depois foi a vez do negro Abdulath que vergonhosamente batido teve a vida salva devido ao capricho de Cornelius Narcelinni que apontou o céu com o polegar, quando o vencido pediu misericórdia.
A jovem Patrícia que apertava nos braços o grande Quaestos Classicus ciciou: -“Este gaulês é um diabo. Se conseguir vencer os três combates que lhe restam para ser considerado o triunfador, juro por Baco que lhe darei 15 000 “asses” em vez dos 10 000 prometidos, pois proporcionou-nos um inesquecível espetáculo.
E Lúcio venceu o reciário Fenício... e o Persa, logo depois.
Este último, porém, antes de tombar, feriu-o levemente no braço, o que levou ao gaulês a pedir para descansar alguns momentos. Quando se julgou restaurado fez um sinal com o gládio e o restante seclário surgiu no limiar da porta Sanavivaria.
Como que sacudido por um terramoto interior, Lúcio estremeceu violentamente: os seus olhos esgazeados fitaram o reciário, enquanto que um murmúrio de admiração enchia a praça. E na verdade tinha de quê esse murmúrio. O novo antagonista de Lúcio era um gaulês loiro e muito jovem, com pouco mais de 17 anos.
Calmamente o jovem aproximou-se do adversário imóvel. Este desnorteado moveu-se... e um vozear de espanto sucedeu à admiração pelo reciário. Não havia dúvida, Lúcio recuava defronte do inimigo. Com golpes falhos de qualquer força ou intersse defendia-se, mas alem disso apenas limitava-se a recuar.
E no espírito de Lúcio surgiram recordações, sensações há tanto esquecidas. Lembrava-se tão bem... tão bem daquela tardinha...fora há dez anos, tinha ele 17 também como aquele jovem...
Tinha ido passear e pela mão levara o pequeno irmão de sete anos. Júlio tinha corrido, brincado, colhido flores e frutos, e as horas passavam sem ele dar por isso. De súbito viram-se na praia. Já ali estavam havia alguns minutos, quando a tragédia se dera. Repentinamente, e quando Lúcio se preparava para voltar à aldeia, viu alguns homens de tez morena e bem armados. Também o viram e correram para ele assustadoramente; Lúcio compreender: Eram corsários assírios ou árabes. Por alguns segundos pensara em fugir deixando-lhes o irmãozito, mas por fim empunhando a faca e dizendo a Júlio que fugisse rápido para a aldeia, correra ao encontro dos corsários. A luta que se seguiu foi épica. Um contra dezasseis.
Vencido pelo número, Lúcio acabou por cair sem acordo, sobre os cadáveres dos seis inimigos. Depois, uma série de factos que lembravam um pesadelo. Acordara no mar alto amarrado a um mastro da barca corsária, que por altura da Sicília foi apanhada por uma nave romana que o levou para Roma como escravo. Em Roma fora comprado por um empresário que o adestrou no manejo do gládio.
Durante dez anos sofrera vexames, dores terríveis, mas uma vontade de ferro que jamais julgara ter, obrigou-o a sobreviver... e a lutar pela vida...
Durante dez anos esperara... e agora... naquele dia em que ele pensara alcançar finalmente a liberdade, oferecia-se-lhe esta em troca da vida do irmão... pois era ele o jovem reciário... era ele... era Júlio. Não havia dúvida... os olhos cinzentos, os cabelos, a mancha no braço e a boca trocista... era ele!
Como viera ali ter? Por que tragédias passar?
Se Júlio vencesse seria liberto e poderia voltar à Gália mas nesse caso... ele... Lúcio? Que lhe aconteceria?
Nesse momento, Lúcio, que continuara a recuar, chocou contra qualquer coisa : Era a porta Libitina.
Então uma resolução atroz encheu o coração do Mirmilão na sua amarga doçura. E cedendo a liberdade que quisera para si, Lúcio abriu a defesa, deixando cair o escudo...
Júlio feriu com força...
Luiz de Lancastre e Távora
(1937- 1993)
In Alvorecer – Revista Académica de Cultura
Nº 5 Dezembro de 1955