Na segunda metade dos anos setenta, no meu gira-discos, nas festas de garagem ou do liceu, tocavam as mais excêntricas batidas e desconcertantes sentenças bramidas por bandas que fariam corar de vergonha os mais atrevidos millennials que por aí deambulam a consumir “experiências”. Respaldado por uma família bem estruturada, debaixo de um ambiente político ainda dominado pelos militares e pela ortodoxia do conservadorismo comunista, a estética insolente e luxuriosa do Rock e de alguma música contestatária que então ecoava proveniente de Inglaterra e dos EUA, constituíam uma saudável fenda numa cultura profundamente castradora que era o “mainstream“ que sobreveio ao Estado Novo. Naqueles anos loucos, neste jardim à beira mar plantado, havia muros verdadeiramente por derrubar e limites por explorar, a moda explodira cá com 10 anos de atraso. A desconstrução é um processo crítico de reinvenção que funciona quando o objecto combatido é experimentado, sólido e tem pilares firmes. O que é trágico é que hoje já não há instituições tradicionais para desconstruir, não se desconstrói o que está feito em cacos. Se é certo que uma família consegue assimilar um “excêntrico” no seu seio, demasiados excêntricos arruínam uma família e receio que o mesmo suceda com uma cidade ou com uma civilização. Pela parte que me toca, a liberdade que experimento hoje, foi construída com o pão que o diabo amassou, em cima de muitas escolhas equívocas e até de erros crassos. Mas o facto é que quando foi necessário, tive uma alternativa, um caminho de volta, proveram-me um atalho de volta a “casa”.
Aqui chegados, a barafunda de referências que as novas gerações encontram parece-me letal. Os corpos intermédios, fundamentais para darem massa crítica a uma comunidade, os chamados contrapesos, estão cada vez mais fragilizados. Se o esvaziamento do interior, das antigas vilas e aldeias, é compensado pelo crescimento das grandes metrópoles, aí predomina o hiperindividualismo, uma sociedade profundamente fragmentada. Nelas sobrevivem com dificuldade as velhas paróquias, clubes de bairro e as associações culturais. A família, que deveria ser a célula base da sociedade, já viu melhores dias: Portugal é o país com a taxa de divórcios mais alta da Europa com 64,2 divórcios por cada 100 casamentos, os quais como sabemos são pouco fecundos – cada vez nascem menos crianças; os casais são eternos namorados e muitos contentam-se com a companhia de um animal de estimação. Cada vez mais as pessoas nascem e crescem isoladas e sem pertença, formadas para dependerem em tudo do Estado, que tudo regula e a todos domestica, com regras viciadas para a tribalização da comunidade, promovendo toda a sorte de excentricidades e aberrações numa lógica de dividir para reinar.
Lembrei-me disto tudo a propósito do Despacho dos Secretários de Estado da Igualdade e da Educação que saiu na semana passada com medidas administrativas para as escolas promovem a “autodeterminação de género”, com base na tal doutrina que afirma ser o género uma questão de vontade individual e não um desígnio biológico. Pretendem eles em última análise, que haverá tantos géneros quanto pessoas e as suas sensibilidades, ou seja, não há nenhum. Estranho é que este despacho tenha sido publicado enquanto o Tribunal Constitucional aprecia o pedido de fiscalização sucessiva de duas normas da Lei a pedido de 85 deputados liderados por Miguel Morgado.
Que estes caprichos adolescentes tenham sido cantados por bandas dos anos 60 e 70 eu percebo, em função do contexto e da época. Hoje, esta história de quererem fazer da Escola um acampamento do Bloco de Esquerda cheira a esturro, a não ser que eles tenham perdido de vez a vergonha, e queiram mesmo deitar isto tudo abaixo para dar lugar ao tal Homem Novo, criado, domesticado e regulado pelo governo, sem filhos, sem família, sem Deus ou ligação. Todos com um chip na cabeça, que será a única fórmula de controlar a rapaziada num balneário universal.
Imagem: Fonte, Marcel Duchamp (1917)