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João Távora

As quatro pétalas de rosa

Pétalas - ilustração.jpg

Conto publicado pelo meu pai, Luís de Lancastre e Távora na revista Alvorecer, "Revista académica de cultura" do Porto em 1955 quando tinha 18 anos.

O local onde o pequeno Tomé se encontrava, o cimo dum pequeno morro, dominava por todos os lados a planície morna, sem contrastes, que se estendia a perder de vista. Só aqui e ali algumas sementeiras de milho, ou bosques de figueiras bravas, atenuavam um pouco a terrível monotonia da paisagem.

O rio, que se desenrolava serpenteante, lembrava uma tira de metal, lançada ao oceano.

No ar, pesado e quente, nem uma aragem corria. Por isso, das chaminés da pequena aldeia que se erguia perto, rodeando o edifício cinzento da Fábrica, o fumo subia ao céu, em colunas verticais.

O sol, inclemente, abrasava tudo.

Do rio, vinha, ensurdecida pela distancia, a algazarra de crianças que se banhavam.

Tomé estava sentado numa pedra, à sombra dum esguio cipreste, vestígio único duma tentativa de arborização, abandonado há muito.

Em frente, dele erguia-se um montículo de terra, encimado por uma tosca cruz de madeira. Era uma campa. A campa da mãe de Tomé, morta havia um mês, pelo rodado das máquinas, na fábrica.

Era ali que ela repousava, num caixão pago pela cooperativa, com três palmos de terra sobre si.

E era ali que Tomé, o seu filho, viera meditar, naquela abafada tarde de Verão.

À saída da escola alguns camaradas, suados, sedentos de frescura, tinham-no convidado a ir com eles “p’ro rio”. Mas ele não quisera ir. Preferira dirigir os seus passos para o cemitério, o cemitério aonde a mãe dormia sozinha o sono a que se chama da morte.

Havia um mês, que ela morrera. Um longo mês... eternidade na vida desta cidade.

E Tomé recordava o dia em que uma vizinha o viera buscar à escola. Boa mulher, chorava, enquanto lhe dizia que a mãe morrera, que fora para o céu.

O garoto não reagira, pois por mais de uma vez já se cruzara com a morte. Tinha visto o pai morrer, aos poucos, duma “doença má”, que o fazia escarrar sangue em terríveis convulsões, no fim das quais ficava arquejante estendido na sua enxerga.

O irmão mais velho, o “Manel”, também se fora, ao cair na pedreira.

Sim, Tomé já conhecia a morte, já a conhecia muito bem.

Mas desta vez o encontro foi pior. Ao ver a mãe, que mal reconhecia naquele pedaço de carne ensanguentado e lívido, sentiu que qualquer coisa se rasgara no seu interior, qualquer coisa que lhe fazia doer muito.

Depois viera o Senhor Abade que carinhosamente o levara a sua casa. Aí, fizera-o comer qualquer coisa, enquanto lhe falava carinhosamente, dizendo coisas que a criança não entendia. Por fim tinham levado a mãe a enterrar. E Tomé fora viver para casa da irmã, casada com um operário.

Agora, junto à campa da mãe, Tomé chorava, calmamente, sem desespero. Talvez nem sequer soubesse dizer porque chorava.

Na sua alma infantil, sentia confusamente que agora estava sozinho, para sempre.

E as lágrimas corriam céleres pela carita encardida da criança.

Por fim cessou de chorar.

E ficou-se pensando.

Tinha apenas nove anos, mas a vida fizera dele uma criança precoce.

Comparava o enterro da mãe, humilde, pobre mesmo, com aquele dum contramestre da fábrica, enterrado na véspera, com charanga a tocar, muita gente, muitas flores.

O Sr. Director e o Sr. Engenheiro tinham vindo assistir, vestidos de negro.

O pessoal da fábrica tivera feriado pago e, cotizando-se entre si, oferecera uma cruz, toda feia de rosas brancas e vermelhas.

E Tomé interrogava-se: porque é que quando o pai morrera e a mãe, não tinha havido nem flores, nem charanga, nem muita gente?

Porquê? Oh, as flores...

A mãe de Tomé gostava tanto de flores... e agora ali estava, para sempre desprovida delas. Sobre ela, só a terra nua, seca.

E, sobre a bela lagea branca do “outro”, do contramestre, havia tantas flores, tantas...

Pela primeira vez na sua ainda curta vida, Tomé encontrava-se perante a injustiça social.

E mirava a campa da mãe, enquanto que um sentimento de revolta, de de raiva, lhe crescia na alma.

De um salto pôs-se de pé e começou a correr.

Oh, não, a sua mãe não ficaria sem flores.

E ágil, a criança corria, rápida, galgando campas, todas ao abandono, cobertas de erva daninha. Por fim chegou.

Defronte de si estava o túmulo do contramestre, coberto de flores.

Com os dedos nervosos agarrou na cruz feia de rosas vermelhas e brancas. Puxou. Teve um resmungo de impotência.

A cruz estava atada dom arames ao gradeamento que rodeava a lonza. Então tentou arrancar algumas rosas do conjunto.

Os espinhos penetraram-lhe na carne e rasgaram-na. Mas a criança não o sentiu. Puxou de novo. Desta vez alguma coisa cedeu.

E Tomé endireitou-se. Ia para abrir a mão, ver o que conseguira arrancar, quando uma voz se fez ouvir atrás de sim.

- “Qu’é que tás p’raí a fazer, garoto?”

A criança voltou-se, reconheceu o coveiro que trôpego se aproximava, curioso.

Então o miúdo, rodando sobre si mesmo, começou a correr, a fugir. Ainda ouviu uma praga do homem, mas por fim tudo voltou ao silêncio em redor de si.

Estacou, ofegando. Curvado, escutou: nada; apenas se ouviam os grilos numa zoada monótona.

Olhou para a mão cerrada.

Sabia que trouxera nos deditos crispados qualquer coisa. Seria certamente uma rosa. Talvez mesmo mais que uma.

E a satisfação encheu-o, numa onda que quase o sufocou.

Dirigiu-se à campa da mãe, sem sentir o sangue que lhe escorria das mãos arranhadas.

Lá chegado, ajoelhou-se e, contendo a respiração, em religioso respeito, quase em adoração perante as flores que iam surgir abriu vagamente a mão...

E quatro pétalas de rosa, vermelhas, magníficas como gotas de sangue, caíram numa doirada nuvem de polén na terra seca e estéril do cemitério...

Luiz de Lancastre e Távora

In Alvorecer – Revista Académica de Cultura nº 3

 Maio de 1955 Porto

Páscoa em liberdade

Aqui chegados parece-me evidente que, como aconteceu no ano passado à medida que o bom tempo e calor aumentava, o desconfinamento não está a resultar num aumento de infecções e que a proibição do governo de celebrarmos a Páscoa como pessoas livres resulta num acto de repressão gratuito e inútil - na Alemanha com o número de infectados a subir Angela Merkel viu-se obrigada a recuar nesse intento, que os alemães não são parvos. Tempo de vivermos na clandestinidade, que a vida terrena é curta.

Evocação de Luís Abrantes por Maria Velho da Costa

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Durante cerca de um ano, convivi e trabalhei, quase diariamente, com Luiz de Lancastre e Távora, Luiz de Abrantes, como gostava de assinar e ser conhecido. Aquele outro nome, o de Távora, há séculos que atrai malefícios.

No meio profissional, no cívico e no político, era o Marquês de Abrantes, sem altivez onde não lhe a provocassem, mas sem pejo do peso do título, feito nome de guerra. Acho que nos entendemos muito bem porque ele não tinha preconceitos que não pudessem ser aferidos ou dispensáveis à mesa e convívio de quem lhe aprouvesse. Tal como Sophia de Mello Breyner, e mais copiosamente dito no seu prefácio ao Dicionário de Famílias Portuguesas, ele sabia que a nobreza é um acidente de carácter muito longamente fabricado e não necessariamente aristocrático. Todos vimos de D. Afonso I e dos seus almocreves. A sua gentileza irónica e o apetite por todas as artes (não de somenos a gastronomia) fizeram o mais de uma cumplicidade tão alegre como profícua.

Perdeu-se alguém que era generoso sem ser incauto, nas ideias, nas emoções, até na confidência e na memória de agravos, que podia ser ácida, mas nunca malevolente. Vibrava com o que fosse criador ou até apenas divertido e, assim, embora fosse curioso do trivial dos factos e dos seres, não se atardava no mesquinho. Escasseasse de meios e de saúde e falasse de tempos em que comera o pão que o diabo amassou, não guardava rancor, nem resistia a algum supérfluo e à expectativa de desafogo. Magoado, não era sovina, nem de si, nem de muita informação de que dispunha. Resmoneava um pouco de achaques próprios e malfeitorias alheias e seguia para o riso e para o trabalho a seu ritmo, nem frenético nem negligente.

Assim chegámos bem a finais de 1992. Tinha-me dado a ler o manuscrito da bibliografia de D. Leonor de Távora, O Tempo da Ira, que a Quetzal viria a editar postumamente. Trabalhávamos com muito proveito meu e entendimento mútuo no projecto As Damas de Longe, série ficcional para imagem com muito dado histórico e peripécia verídica de banda desenhada. Pasmava-me a agilidade da sua imaginação sempre dentro das baias do plausível. Apercebíamo-nos de que o mal, a cupidez, a crueldade e a ganância nos escapavam das viagens e paixões das décadas da Índia, não por sermos bons, mas porque éramos coniventes na apreciação daquela gente desvairada. De então e de alguma vez de aqui e agora. A indulgência com os homens é uma forma de timidez, ou de fadiga, ou apenas um prenúncio de sabedoria feliz, escrevia ele para o computador novo, que o encantava. Catarina Pirró, a adolescente plebeia que seguira Garcia de Sá para as Índias, feita grumete, não entendia nem concordava nada com estes propósitos que Luiz de Abrantes punha na boca do namorado: Credo, meu Senhor, pareceis a Augustina Bessa-Luís! Ríamos bastante e ele ufanava-se com a semelhança que eu lhe achava, até da feição menineira, com Renoir, o cineasta: Les femmes, il faut d’abord les faire rigoler.

De saúde, ia fazendo planos de cuidar-se mais, nem sempre adiados. E, desprendidamente terno como era nos afectos, ora achava de mais ou de menos os cuidados que inspirava aos seus. Como toda a sua decifração da História e da Heráldica e da Sigilografia parecia por vezes cata de fraudes e desdém de pretensões. Até a sua venerada D. Leonor morrera porque tinha todas as virtudes e dons, excepto o talento de bem fazer a sobrevivência, sua e dos seus. A belíssima senhora fora assim carrasco e vítima. Eu pasmava de tanta lucidez nos bastidores da tragédia. Onde estava o conservador convicto, o detractor de Pombal, o homem que vituperava outras arrivistas tiranias? Não consigo ter rancores, disse Luiz de Lancastre e Távora. Mesmo quando já só abro a televisão e o guardanapo e me sinto muito mal, a minha vida é para diante, ou tão para trás na infância, quando tinha as algibeiras cheias de novidades. Verdade seja que ele guardava a dedicação em óvulos de plástico, invólucro de chocolates, e era curioso como um menino. Inesperado salto, quando agora tudo lhe parecia ir mais de feição. Porém, crente como era e poupado a uma agonia longa, é possível que tenha morrido na alegria, fazendo jus ao timbre do contraditório nome que fez tremer Lisboa: um golfinho de prata, sainte de uma capela de ramos folhados de verde e floridos de oiro.

 

Maria Velho da Costa, Revista Oceanos - Junho de 1993

Crise, qual crise?

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Ou muito me engano ou a pesada factura da pandemia que teimámos em querer domesticar não tardará a ser-nos cobrada com pesados juros, na forma das insurreições e abalos políticos que normalmente acompanham os períodos de penúria e desemprego. De resto, curioso é verificar como a radicalização da conflitualidade e a inflação dos extremos políticos aponta para essa tempestade perfeita. De facto, de há uns anos para cá vêm-se acentuando sinais de que as pessoas se cansaram da enfadonha prosperidade esforçadamente conquistada pelos nossos avós depois da II Guerra. Suspeito que o buraco existencial que é inerente ao ser humano não se preencha com entretenimento,  viagens, gadgets e outras mundanidades que no ocidente foram democratizadas e substituíram a espiritualidade. As tribos guerreiras que nas últimas decadas emergem como cogumelos à volta de toda a sorte de fracturas sociais são indicadoras de uma acesa predisposição para um conflito que aguarda ocasião propícia para eclodir com estrondo. Enquanto isso assistimos ao acelerado enfraquecimento das instituições que foram garante da nossa liberdade e dos equilíbrios precários que suportam um regime de soberania popular, expostas à corrosão das dinâmicas fragmentárias híper-individualistas da era digital.

A história da humanidade demonstra-nos à saciedade um periódico surgimento dum instinto autodestrutivo, que em tempos foi justificado como uma forma de controlo do subconsciente colectivo da demografia, mas que eu cada vez mais me convenço ser o fenómeno decorrente da veia trágica que a nossa existência comporta. Quando as comunidades saciadas não têm mais cidades para reconstruir e restaurar, pontes para reerguer e irmãos martirizados para sarar, cuidar e acolher, dedica-se ensimesmadamente a escarafunchar as suas cicatrizes... até fazer sangue.

Isto tudo é apenas uma intuição minha mas, pelo sim e pelo não, tenhamos cuidado com aquilo que desejamos e as guerras que compramos.
 

Fotografia: Dresden desperta depois do grande bombardeamento.

Do passado onde nasci

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Tenho andado desaparecido destas andanças do blog porque me vi confrontado pelo luto e com a subsequente desmontagem da casa dos meus pais que ainda perdura. Uma operação profundamente emocional, que exige revisitar objectos, armários, gavetas, papéis, fotografias, esqueletos e memórias de tempos passados, sentimentos díspares e contraditórios que só agora me autorizo espiolhar.

Em particular, descobrir ou revisitar manuscritos do meu pai remete-me para uma proximidade que, se não fossem estas circunstâncias, nunca me atreveria a reivindicar. Esse encontro tem-me ajudado a perceber uma narrativa que perpassa pelas paredes daquela casa de família, através dos quadros, gravuras, daguerreótipos ou fotografias de antepassados e, não menos importante, na iconografia miguelista que é legado da família que o meu pai com zelo manteve e cultivou como pode, pelo menos numa perspectiva histórica e simbólica - qualquer pessoa mais atenta perceberia que naquelas paredes se contava uma história, onde é que eu andava com a cabeça...

Do seu espólio diversificado, entre muitos ensaios históricos e publicações que revisitei por estes dias, também sobra um interessante conjunto de documentos referentes ao CDS e à situação política nos anos de 1974 a 1976, duas versões manuscritas de um romance duas vezes começado, duas vezes terminado e jamais publicado; entre muitos outros textos e papéis escrevinhados na sua letra bem desenhada em papel almaço quadriculado, que era onde as pessoas como ele escreviam naquele tempo em que não havia ainda blogs. Uma bebedeira de informação e sensações emerge do revirar das estantes, que não só o pó em que todos nos tornaremos um dia. Por vezes reavivaram-se-me na memória os melhores tempos daquele espaçoso andar do princípio do século XX em Campo de Ourique onde nós, os cinco irmãos “Abrantes”, crescemos e nos fizemos gente.

Vem isto a propósito do gosto pela história que sempre nutri, mas que desde os meus quarenta e tal anos ganhou foros de voyeurismo, na emoção que é procurar o encaixe de peças de um puzzle pouco intuitivo, com a leitura de livros, ensaios, documentos e até cartas antigas, com a partilha de testemunhos dos tios mais velhos (tenho várias horas de gravações das suas memórias), de conversas com amigos que nos ajudam a deslindar enigmas genealógicos (o importante que vêm sendo os meus amigos nestes últimos tempos), cujas soluções às vezes escondidas à frente do nosso nariz guardamos como troféus, como se de alicerces existenciais tratassem, tomados de uma espécie de paganismo – Deus há-de perdoar-me. De resto compreenda-se este meu amor acrisolado pelo passado, atendendo à resposta que Churchill deu quando o questionaram sobre o assunto: "Claro que gosto do passado, nasci nele".

Resta saber o que serei capaz de fazer com o legado histórico que me tem sido desvendado e há anos venho juntando e organizando. Depois do luto, talvez.

Casamento dos meus avós Abrantes

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Esta é uma curiosa fotografia  do casamento dos meus avós Abrantes, José e Maria Emília, na casa da família Ulrich na Cova da Moura a 26 de Fevereiro de 1928. Na farda militar, o meu avô José (9º Marquês de Abrantes) ostenta as condecorações pela sua participação na Grande Guerra, primeiro pela Legião Estrangeira do exercito Belga e posteriormente pelo exército Português graças à amnistia da república aos seus condenados políticos em 1917. 

Depois de uma curta lua-de-mel na Ericeira, partiram para o Luxemburgo, apenas tendo voltado definitivamente para Portugal em 1935 para uma casa na Calçada da Estrela onde nasceu o meu pai em 1937.

Visita ao Palácio do Marquês de Abrantes

Coisas de família. Bela síntese narrada pelo historiador Joel Moedas-Miguel sobre o Palácio do Marquês de Abrantes (esta é a designação correcta que acabou por dar nome a rua Direita de Santos o Velho), numa visita ao local onde ainda nasceu e viveu o meu avô paterno quase até 1908 quando foi vendido ao estado francês que já ocupava parcialmente as instalações para serviços consulares. Parabéns a todos os envolvidos no projecto.