São as histórias que nos salvam
Vem-nos da infância o irresistível fascínio por histórias. Uma história que nos resgate do vazio, dos medos e angustias, da fria solidão que se esconde na camada mais interior de nós mesmos. Talvez por isso, naquele sombrio lusco-fusco de alma que era a hora de adormecer, da criança largar as amarras ao dia agitado pelos espantos, afectos e sensações novas, antes do mergulho no escuro, na ausência, fosse tão precioso consolo ouvir uma boa história contada pelo pai ou pela mãe à beira da nossa cama.
Se na infância é uma boa história que nos salva a vida, não o é menos na maturidade; afinal passamos a vida à procura de histórias, somos caçadores de histórias, que nos restabeleçam as energias e o ânimo para abraçar a luta diária de deveres e maçadas. É assim que nos descobrimos ávidos por uma história oculta num retrato todo formal, numas ruínas duma casa, numa obscura gravação sonora antiga ou nas glórias passadas exibidas em símbolos, num emblema ou brasão de armas ou através de testemunhos confidenciados em documentos amarelecidos pelos séculos. A perdermo-nos num nunca acabar de pistas e enigmas, de parentescos por desvendar, contradições que reclamem pela nossa curiosidade e atenção, e a não menos necessária especulação, que no fim do dia nos permita ganhar uma história que nos resgate para longe das nossas misérias, da nossa precaridade, que nos expanda para outros horizontes temporais e existenciais. A descodificar, a investigar as pontas soltas duma história mal contada, numa relação íntima, o mais das vezes um mensageiro do passado, a que nos rendemos como a um velho amigo. Através de frases que nos chegaram por testemunhos vividos (quase sempre temos direito a uma tia ou parente com uma memória prodigiosa, repositório de mil e uma histórias), caracteres desvendados em vetustas fotografias que carecem de nomes; feições ou trajes, recados nas entrelinhas de diários ou cartas. As condecorações retratadas ao peito dum ufano antepassado do século XIX dizem muito das suas andanças políticas…
Se é esse o trabalho do historiador, sistematizado com as suas ferramentas, métodos científicos e ciências auxiliares, esta é também uma actividade eminentemente humana, responder à democrática inquietação que nos desafia a enfrentar o mistério, descobrir os dramas que se escondem à nossa volta, as peças escondidas de um puzzle sempre inacabado, que reclama pela nossa curiosidade e onde vamos à procura de mais humanidade, quem sabe o projecto de Deus lá escondido. Era isso que procurava o meu pai, que venho redescobrindo tardiamente pela sua obra historiográfica, estudos e publicações, em particular à volta da genealogia e da heráldica medieval. Agora percebo que o que ele pretendia não era apenas listar nomes e ligações genealógicas, ou enumerar as regras e as formas dos antigos “emblemas” de famílias ou comunidades geográficas. O que o meu pai procurava era conhecer as pessoas que daí emanavam e quem sabe descobrir alguma história. Porque a história é feita de histórias com pessoas lá dentro, de onde resgatamos a nossa humanidade.