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João Távora

A minha enxada

Enquanto o mundo inteiro andava entretido com prioridades inadiáveis e assuntos de suma-importância, na terça-feira passada quando enviava um orçamento a um cliente, o meu fiel computador portátil já com doze anos de trabalho em cima e algumas letras do teclado desvanecidas, entregava a motherboard ao criador. E eu a pensar que tinha uma vida difícil... privado da minha enxada, vi-me subitamente numa grande aflição - que foi como se me tivessem cortado os dois braços. Claro está que adquiri logo um novo que me chegou cheio de mariquices que é donde agora vos escrevo esta crónica. Evidentemente que desde ontem tenho andado fanaticamente a formatá-lo para que a organização, funcionalidades e eficiência se pareçam tanto quanto possível com o meu defunto companheiro. Certo é que com estes maus-tratos iniciais já perdeu aquele irritante ar imaculado e daqui a uns dias nos iremos entender às mil maravilhas. Mas pronto, é só a minha enxada e a vida dos outros continua como se isso fosse óbvio.

Sintra, 1962

Fotografia Avó Xunxinha e netos.jpg

Gosto muito desta fotografia, julgo eu que tirada pelo meu pai no jardim da nossa casa em Sintra (foi morada de família durante cerca de dois anos antes de irmos em definitivo para Campo de Ourique) cálculo que verão de 1962. Com um ótimo enquadramento, nela figuram a minha saudosa avó Xunxinha, Condessa de Castro, que tanto marcou a minha infância; ao seu colo está o meu irmão José e à esquerda o meu primo homónimo João de Castro, que foi também um belo companheiro de brincadeiras e até de escola, com o olhar atraído pelo carro de plástico que está no chão.

A metáfora dos pilaretes

Pilaretes.jpg

Sou sempre muito crítico com as regras e restrições que me impõem talvez porque fui educado para cumpri-las ao contrário da maioria dos meus compatriotas. A praga dos pilaretes que empestam as nossas cidades, e a de Lisboa em especial, é toda uma metáfora da nossa dificuldade de viver em liberdade. Os portugueses têm uma relação ambígua com as regras, relativizam os princípios que gostam de usar consoante as suas conveniências a cada momento – não, não somos rebeldes, apenas oportunistas (o exemplo chega-nos de cima). Se um automóvel estacionado em segunda fila bloqueia a sua saída, o português, ufano do alto do seu apurado sentido de justiça vocifera contra a falta de civismo alheia, independentemente de no dia anterior ter feito o mesmo – talvez sem consequências de maior a não ser empatar o tráfego - só para beber a bica ao fundo da avenida a caminho do escritório.

O que seria dos nossos passeios, das nas nossas ruas e calçadas, sem os pilaretes de que toda a gente se queixa por serem inestéticos ou armadilhas para os invisuais ou os mais distraídos? Todos nos lembramos a balburdia do estacionamento automóvel quantas vezes impedindo a passagem de peões antes de surgirem os malditos pilaretes.

Mas o importante é percebermos como nos relacionamos com as regras de civilidade estabelecidas e a atenção ao próximo para entender se merecemos ou não ser tratados como crianças pelas “autoridades” que no sofá em frente à televisão bajulamos a vê-las por na ordem os hooligans da equipa adversária, mas que desprezamos quando nos manda parar numa operação stop por excesso de velocidade, quando julgávamos que ninguém nos estava a ver.

Voltando ao início desta conversa: sou muito crítico com regras e restrições, gosto de indagar sobre o seu sentido e protestar pela falta dele, porque fui educado para obedecer.  No fim de contas acabo por entender o porquê de nesta fase da pandemia sermos um dos povos da Europa que ainda reclama por mais e mais restrições (caso contrário o goveno já as tinha aliviado há muito): isso acontece porque cultivando o chico-espertismo (o exemplo vem de cima), poucos são os que lhes obedecem verdadeiramente, pois que cada um se sente no direito de ser excepção.

Não nos queixemos portanto de viver num emaranhado de pinos e pilaretes. Essa é a única forma dos portugueses comportarem-se com civilidade, e um sinal do nosso grande atraso. Temos aquilo que merecemos, somos tratados como criancinhas com direito a uma ração ao final do mês. Triste sina a nossa.  

Os bares, as discotecas e o puritanismo impante

No início achava que demasiados artistas sobrevalorizavam a importância da dança e entretinha-me com boas canções e poemas desafiantes. Rapazes e raparigas que mal se conheciam a dançarem freneticamente melodias simples com ritmos fortes? Não percebia o interesse.

Chegado à adolescência, rapidamente fui convertido a esses rituais rebeldes, tantas vezes mal aceites pelos adultos: de tarde ou de noite, e quantas vezes até de madrugada, dancei até próximo da loucura, em festas particulares, do liceu ou em espaços próprios, fosse no Jamaica, no Tokyo ou no 2001 no Estoril de onde saia com os ouvidos a apitar - desse modo conheci algumas miúdas bem giras.

Foi assim que me fiz uma pessoa inteira e livre e escolhi o meu caminho, acidentado é certo; mas graças ao qual, anos mais tarde conheci a minha mulher com quem casei para fazer família. Livre, com conhecimentos de causa - sabe Deus!

Nesse sentido suspeito que ainda estão por avaliar as mais profundas cicatrizes da paranóia do Covid19 na geração dos meus filhos. Que têm da minha parte total autorização de serem livres para gozarem em plenitude o que é próprio da sua idade.

Na clandestinidade se assim tiver de ser - diga-se.

À conquista da liberdade

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Faz-me muita impressão a quantidade de moralistas por aí a julgar os pais dos alunos da escola de Famalicão por terem princípios e quererem aplicá-los na educação dos seus filhos. Esquecem-se que a coerência é a única maneira de nos fazermos entender com as crianças. Toda esta novela que ainda não acabou, é uma lição de amor condenada ao sucesso (a felicidade dos filhos), porque estes miúdos são uns privilegiados - têm pais que olham por eles.

Mal andam os pais que delegam acriticamente a responsabilidade da formação dos seus filhos ao Estado e às modas das maiorias ruidosas de circunstância.