A nobreza, definitivamente, é um acidente de carácter
Por Manuel Lamas de Mendonça, a propósito do livro Casa de Abrantes, crónicas de resitência
"Recebi, e agradeço muito, a tua crónica de várias crónicas de resiliências ligadas por um fio, ou vários, se assim o preferires.
Li tudo já, inclusive o respeitante ao Senhor Marquês., teu Pai, que foi a única personagem que five o privilégio aflorar muito ao de leve, e de ouvir narrar um pouco mais.
Primeiro sou forçado a reconhecer que é necessário ter peito para abrir a camisa, em publico, sem procurar disfarçar visivelmente (que eu tenha dado por isso) as zonas onde existiram abdominais, mas humanamente ladeadas pela fragilidade de gorduras ou, mais coloquialmente, banhas.
Como um risco num vinil regressa-me sempre a pergunta de : porque o fizeste, que conjunto de pulsões te moveram ao doloroso recriar de uma resiliência erigida como padrão comportamental em contracorrente?
Estou mal colocado para entender. Como descendente de um insignificante conjunto de, nem sequer obscuros, notáveis municipais, que não me consta que tenham arranhado sequer a estória das suas freguesias, não sinto pesar-me nas costas a História do nosso País. Nem o peso de signos e símbolos que possam configurar um “Je mainteandrait”, que eu admiro estética e eticamente, mas apenas como bússola pessoal, e fio de prumo para medir os desvios próprios.
Recordou-me uma conversa durante a qual, abordando eu as dificuldades de compaginar as características pessoais do Pretendente, e da sua entourage, com a pessoa real e humana que desejava admirar, me respondeste:
- Erro, "non sense" completo. É a ideia, o conceito, o ideal que deves seguir. E distancia-te das pessoas concretas, que apenas são humanas, como tu e eu.
E foi com se levasse um murro nos olhos que tropecei na tua frase lúcida, e virilmente redonda e lapidar :
A nobreza, definitivamente, é um acidente de carácter.
Vou reler várias vezes, seguramente muitas, e com um diversificado feixe de atenções, as tuas crónicas de várias resistências.
Tendo ficado com a convicção de que és um acidente de carácter curtido, renascido e incessantemente reconstruido, um produto coerente da resistência duma vontade teimosa.
E se no mundo existisse uma percentagem desejável de acidentes semelhantes, nós, os outros, teríamos mais facilidade em prescindir de entender quase tudo nos nossos carreiros, repletos de encruzilhadas tão, mas mesmo tão, hesitantes,
O contexto em que escreveste, que é, sem felizmente, nem infelizmente, aquele em que tive oportunidade de te de ler.
O Crepúsculo dos Grandes (1750 – 1832), de Nuno Gonçalo Monteiro, apenas cronologicamente precede A Casa de Abrantes, crónicas de resistência (1762 – 1993), de João de Lancastre e Távora, curiosamente, um dos mais modernos sobreviventes à extinção de uma forma de Grandeza eruditamente retratada pelo primeiro destes autores.
Para um hipotético medievalista, que tivesse estudado com Sotto Mayor Pizarro, todas as linhagens galaico - portuguesas foram modernas, durante os respectivos períodos, e deixaram marcas individuais e colectivas na fracção de História de que foram, em simultâneo, ferramentas e protagonistas.
Já para um, não menos virtual, paleoantropologo, que tivesse constatado no registo fóssil a sobrevivência, indiscritivelmente áspera, de um género diversamente humano, a todas as glaciações e períodos de aquecimento, catástrofes geológicas, alterações ecolócicas, ao longo de mais de um milhão anos: - esse relativizaria tudo o que não fosse a capacidade de adaptação do individuo humano, e das formas de sociedade em que se ia organizando, reactivamente.
E, finalmente, o brincalhão que tivesse o privilégio de sobreviver, desprotegido e solitário, à Universidade da rua, forçado a alinhar nos crueis campeonatos das ligas de bola de trapos, a que se resumia o percurso do combatente da vida, quando a geração do estamento social a que pertencia o João de Lancastre e Távora foi lançado de para-quedas numa rua. Esse brincalhão curtido ficaria com a ideia de que tudo começou com a agricultura. Sim, com a agricultura. Logo que, voluntariamente, ou não, optamos pela escolha crucial de abandonar o modo de vida de caçadores recolectores.
Aí há cerca de 10./12.000 anos atrás, quando se começaram a gerar os primeiros excedentes de produção que, não sendo imediatamente consumidas, careciam de ser conservados e geridos. Daí decorreu una diferenciação social utilitária: e toda a civilização passou a assentar sobre uma hierarquia de contabilistas, escribas, responsáveis pela segurança material dos bens, e dos notários regulamentadores do trajecto social da propriedade e dos respectivos serviços .
Por um processo de decantação social decorrente deste embrião surgiram as oligarquias dirigentes. Não temos uma ideia, clara e sistemática, se estas se organizaram já em torno de um qualquer tipo de monarca, ou se esta peça-chave os precedeu, emergindo das forças de segurança, mais imposta do que consentida. Mas damos como provável que o seu surgimento tenha coincidido com o recurso aos clérigos de teologias justificativas da legitimidade transcendente dos sistemas. E da sua correspondente capacidade de utilizar a coação para impor, em nome do bem comum, essas coisas evolutivas, mas perenes, que são a Lei e a Ordem que tentam compatibilizar, regulando-a, a violência egotista intrínsecas á natureza do sobrevivente que é o género humano
O Direito Divino aparece como fundacional, e ocupou um segmento preponderante da História. Até que força decorrente da recusa desse tipo de legitimidade que, após milénios. havia culminado, deu origem a essa coisa multiforme que, sempre em nome do bem comum, mas também compreensivelmente identificando-se com a modrnidade e o progresso, passou a designar-se como soberania popular.
Mas o raio do conceito de popular é proteico, polisémico, e susceptível de se ajustar a conjunturas sócio-económicas radicalmente diversas. Na fase ascendente das primeiras revoluções sociais cingia-se ao segmento social maioritário que foi sacrificado como combustível de uma determinada via de progresso material, e nasceu a reivindicação da ditadura do proletariado.
Entretanto, naquilo que entendemos culturalmente como o Ocidente liberal e democrático. Espaço demográfico momentaneamente equiparado á via correta e definitiva para um fim da História, quando na realidade correspondia a menos de um terço da humanidade, e a uma parcela minoritária do Produto Mundial Bruto, o liberalismo, as democracias formais, o fim da unipolaridade, e o fracasso prematuro da globalização culminaram também.
Como diria um certo Pessoa, o espaço critico onde as coisas acontecem deslocou-se para um Oriente a Oriente do Oriente. E está a alvorecer, de novo, uma Nova Ordem Mundial (passe o pleonasmo).
Não me parece que o velho mundo tivesse um plano B. A velha classe média, tal como havia acontecido com o proletariado, foi esmagada e fundida, deixando de ter protagonismo como motor do progresso material. Ou como geradora de novidade doutrinária e pensamento filosófico. Ou como reserva humana das tradicionais religiões do livro. Antes se desmorona, estilhaçando-se em fragmentos de teses de rutura, que minam inexoravelmente os valores, as crenças e comportamentos que, durante séculos, lhe haviam permitido uma vida de equilíbrio dinâmico mas instável.
Décadas de Estado tendencialmente social assistiram a uma evolução cancerosa durante a qual porogressos reais se foram dissolvendo em estatísticas selectivas que visam obnubilar uma situação em que os ricos e poderosos são cada vezes menos numerosos. Mas se reorganizam em corporativas aristocráticas discretas, quando não secretas, que atingiram uma capacidade de engenharia social de que somos testemuntas permanentes antes de dispor de uma pedra da roseta que permita traduzi-las. Que a gestão equilibrada de recursos escassos não se compadece com a performance de taxas de crescimento anuais permanentes. E que o consumismo induzido gera um espiral de vazio sem sentido que não preenche, nem substitui, o vazio espiritual que se foi instilando em cada um
E multidões incomensuráveis foram empurradas para chocantes limiares de sobrevivência. Ou, morrem, pura e simplesmente de fome, de miséria, e de doença, perante a impotência de uns quantos, e a impassibilidade de quase todos. NÓS
Perante este estado de coisas, em que se multiplicam os conflitos violentos, que são apenas de alta ou baixa intensidade, para quem não é directamente atingido po eles, qualquer tentativa de reacção contra um pensamento único, gradualmente mais aberrante e desconexo, vai direitinho de encontro ao actual entendimento inoculado de soberania popular. São, genérica e indiscriminadamente, manifestações de populismo
É este o Situation Report no ano do Senhor de 2022
João de Lancastre e Távora sabe que isto não vai acabar bem, e que a factura vai ser duramente paga por milhões de seres humanos.
Mas não ignora também no registo fóssil de um modo de ser, e de de estar, a sobrevivência, indiscritivelmente áspera, de um género diversamente humano, a todas as glaciações e períodos de aquecimento, catástrofes geológicas, alterações ecolócicas, ao longo de mais de um milhão anos: - e julgo que relativiza tudo o que não seja a capacidade de adaptação do individuo humano, e das formas de sociedade em que se irá organizando, reactivamente.
Sabe distinguir o final de um ciclo longo, do final dos tempos. Conhece o que está inscrito no genoma humano em termos de padrões comportamentais.E que sobrevivemos apenas pela capacidade de passar saberes e entenderes, mas também emoções e sensibilidade, de geração em geração
Em Sodoma e Gomorra sente a falta de Esparta. E, por detrás da escrita preparou um avio, uma trouxa que entende transmitir. Um embrulho com partes íntimas do seu manual de sobrevivência para os tempos que estão a acontecer.
Os da sua casta, em vias de extinção diga-se, saberão ler nas entrelinhas, e á transparência. Creio que muitos conheciam um passaporte para o futuro:
É necessário que tudo mude para que tudo permaneça em aberto.
Ficam a dever-lhe outro, lavrado pelo seu punho:
A nobreza, definitivamente, é um acidente de carácter."
Manuel Lamas de Mendonça, Casa da Fonte das Somas
30 de Maio de 2022
Imagem: fotografia de uma trincheira (atravessada por uma ponte) pelo meu avô José na Flandres