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João Távora

Disclaimer

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Como prova de que sou um bom português (não gosto muito do termo "cidadão", que me lembro logo da guilhotina francesa) começo por fazer um aviso prévio: por minha vontade não existiriam autocracias nem ditaduras, regimes que por principio deploro, todos os países do mundo seriam culturalmente tolerantes e democráticos, lastimo o preconceito racial e a exploração do homem pelo homem, nomeadamente imigrantes, a desigualdade de género, o tráfico humano, detesto a estigmatização e repressão dos homossexuais, e por último sou visceralmente contra a corrupção. A par disto tudo, refira-se que compreendo a importância da diversidade cultural e religiosa no planeta apesar de conceder que tudo seria mais fácil se toda a gente se regesse pelos meus sofisticados princípios judaico-cristãos, mas isso levar-nos-ia a reflexões demasiado complexas para este post. Também não tenho a culpa que Marcelo Rebelo de Sousa não prescinda duma ida ao Qatar para se promover a si na zona mista do estádio – a instituição que representa por estes dias está nas lonas (alguma vez não esteve?), não promove nada nem ninguém – e que não tenha optado por ficar a ver o jogo da selecção sossegado no Palácio de Belém.
 
Dito isto, assumo que tenho seguido o campeonato do Mundo no Qatar com curiosidade e sem qualquer remorso. Estando o certame a ser organizado há doze anos naquele exótico destino agora é tarde para o seu cancelamento ou outras impertinências, que a boa educação e a diplomacia têm regras. Mais, acho que a vulgarização do aproveitamento político de grandes eventos desportivos por certas causas é uma caixa de pandora, que um dia acaba mal: vai chegar o dia em que os torneios só serão possíveis entre paróquias, quanto mais entre nações. Muitos boicotes ao longo da história têm sido realizados entre países e culturas desavindas, mas por princípio esse não me parece um bom caminho. Claro que hoje ninguém sabe o que é o Espírito Olímpico, muito menos quem foi Pierre de Coubertin. E se algum leitor depois deste último parágrafo tiver dúvidas de que, apesar de tudo, eu sou bonzinho, que volte ao início do texto. E não me venham chatear com moralismos.

Qatar 2022

O futebol é importante nas nossas vidas, porque entre outras coisas, ajuda a juntar pessoas de diferentes sensibilidades, nacionalidades, origens culturais. Juntar é sempre melhor do que dividir. A "pátria" de cada um terá sempre diferentes nuances e cumplicidades: familiares, políticas, históricas e estéticas - porque é que haveremos de estar sempre a querer afirmar a nossa originalidade "pessoal"? Essa experiência de unidade (na bancada de um estádio) é fascinante, mesmo com a reserva de quem não prescinde da racionalidade a olhar o mundo - não há perigo de diluição.
Pobres de espírito são aqueles que, de bicos de pés, na sua mediocridade, se acham superiores a tudo isto.
Aos mais renitentes, aconselha-se a que durante o campeonato do mundo de futebol, em vez de se sentarem em frente à televisão a remoer, leiam livros, muitos livros. Desse modo, no fim, nos entenderemos melhor certamente.

Agora deixem o povo ver a bola…

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O que é que mudou desde a Cimeira do Clima ocorrida no Qatar em 2012, sob os auspícios das Nações Unidas?

Ao menos o Mundial de Futebol tem a virtude de ter ajudado, mesmo que tardiamente, o jornalismo em geral e muitos virtuosos comentadores em particular, a descobrir que o Qatar não é uma democracia liberal, antes pelo contrário. Um escândalo de que ninguém suspeitava...

E o que se pretende agora, além da exibição de virtudes piedosas, com a ostracização daquele regime autoritário com uma cultura anacrónica, que nos últumos anos vem preparando com tanto empenho o Mundial perante o silêncio cúmplice de (quase) toda a gente?  

Por paisagens marginais

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Quem conheça um pouco Henrique Pereira dos Santos, autor do texto deste livro, sabia já como, a sua permanente busca de objectividade e fundamentos solidamente comprovados nas suas opiniões, esconde mal uma alma sensível e curiosa que, assumidamente agnóstica, se deixa arrebatar facilmente pela beleza, que é um assunto da metafísica. Isso percebe-se não só por algumas das suas simpatias literárias ou musicais, que por vezes deixa escapar nos seus comentários, mas pela forma como nos apresenta o objecto da sua formação académica e profissional em “Das Pedras, Pão”. Aliás suspeito que a matéria da Arquitectura Paisagista se preste a este perfil. Desses sinais nos dá conta a fascinante conjugação do texto com as fotografias da autoria de Duarte Belo, que entremeiam cada capítulo e nos estimulam o olhar ao longo de toda a obra. Aliás, a opção da não legendagem das fotografias concede-lhes um protagonismo equiparado à prosa, e não de seu suporte. Apesar da sua ordem obedecer de algum modo ao desfolhar dos temas discorridos pelo Henrique, no seu género de linguagem austera, o conjunto, como que uma composição, convence-nos da erudição estética que constitui a observação e reflexão sobre o clima, a paisagem e o homem em interacção. No mesmo sentido vai a atracção dos autores pelas paisagens “marginais” que são o objecto dos olhares derramados em imagem e texto neste livro. Terras marginais, explica-nos o Henrique, porque o são em termos da produção agrícola, “quase despidas de árvores, e para quer que se olhasse, só se viam charnecas, mato rasteiro e pedra.” Talvez que a nossa cultura cristã seja a fonte da atracção pela marginalidade que comungo com o Henrique. Estranho só que se recuse a ouvir os Genesis do tempo em que não eram mainstream.

Este livro é como que um passeio, o relato de um caminho, a explicação duma paisagem quase sempre áspera e desumanizada do país interior em torno da Serra da Estrela, com os seus recantos verdejados pela existência de água, paisagem que se explica a si mesma se a perscrutarmos. Diz o nosso arquitecto paisagista num pequeno assomo autobiográfico na introdução: “Faço parte daqueles para quem as coisas extraordinárias – os monumentos, os sítios obrigatórios, os museus que não se podem perder e, dentro deles, as peças imperdíveis – são essencialmente pretextos para o caminho.” Para uma peregrinação, direi eu. Uma peregrinação de interrogações e curiosidade sobre o que se nos calha revelar o caminho – não metafórico. Num tempo em que a realidade se nos impõe luminosa e intrusiva em múltiplos ecrãs, tornando os nossos olhos e mentes preguiçosas, arriscamos a perder a vida ao não olhar para o caminho: “De que vive esta gente? Por que razão num sítio se come mais coentros e noutro mais salsa? O que faz ali aquela vinha e que tal o vinho que de lá sai? Por que diabo há este queijo nesta região? A que se devem estas nuvens de insectos que me saem ao caminho?”

Mas esta obra (texto e imagens) não é propriamente poética. Com a sua leitura aprendemos nomeadamente da vantagem do pastoreio em relação ao fogo ou ao pousio – a função coproiética que permite ao solo a absorção de nutrientes devolvidos através da matéria orgânica dos animais. Uma alternativa ao fogo? Sempre o fogo tão incompreendido quando visto na cidade pela televisão num sofá. Fogo fatal que a nossa cultura acredita ser evitável a juzante, quando devidamente "domesticado", provocado fora de época e em condições de maior humidade e pouco vento, favoráveis ao seu controlo em intensidade e extensão. Uma alternativa ao abandono do homem, e aos paraísos que daí tardam surgir?

"Das Pedras, Pão" também é a revelação dum Portugal agreste e longínquo, misto atlântico e mediterrânico, hoje abandonado, mas que nos corre nas veias. Que aprendeu engenhosamente a fazer das pedras pão “de sangue” por causa da sua magreza, onde fosse possível medrar algum centeio. Esta é uma paisagem abandonada pelas pessoas, “onde a vegetação natural tem vindo a ocupar os espaços abandonados e que só o fogo parece perturbar” para a qual o Henrique, inconformado, reclama um olhar diferente, uma nova economia que a preserve humanizada, capaz de domesticar um território cada vez mais hostil, infernal – sempre os fogos.

O objecto do livro propriamente dito quase que vale por si mesmo pelo bom gosto do desenho. De capa dura e espessa, prescinde da tradicional lombada, o que facilita a passagem das páginas feitas num papel de boa gramagem com uma textura que concede às fotografias uma coloração baça e agreste quase como a paisagem que retrata, sempre despida de gente. É um livro para pousar numa mesa de sala, a convidar o passante a uma vistoria rápida, que talvez merecesse um tamanho (e um preço, eu sei) maior.

"Das Pedras, Pão" poderá ser adquirido no seu lançamento dia 15 às 18:30hs na livraria da Travessa R. da Escola Politécnica 46, ou no dia 16 às 17:30hs no salão nobre do Instituto Superior de Agronomia por ocasião duma conversa à volta do assunto. Estará também à venda nas livrarias ou no Museu da Paisagem.

Ficha técnica: 

Das Pedras, Pão/Bread from Stones, 254 páginas © 2022 Museu da Paisagem

Texto Henrique Pereira dos Santos

Fotografias: Duarte Belo

O desafio da normalidade

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Não só a recente epidemia de medo explica o fascínio (a saudade?) exercido pela Covid19 em tanta gente, mas o facto do assunto ter monopolizado as suas preocupações durante quase dois anos em que a vida aparentava ser confortavelmente simples: um assunto arrebatador que nos distraía das muitas pequenas e grandes misérias que afligem a vida de toda a gente, normalmente chama-se alienação. Agora que com o frio chegam as doenças respiratórias, há muitos especialistas à espreita de recuperar os seus lugares nos noticiários a espalhar o medo nos espectadores incautos ou com dificuldades de adaptação à "normalidade" da vida. Uma experiência sempre desafiante, sem dúvida.

Imagem: fotografia da secção de brinquedos dum qualquer supermercado ao pé de si