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João Távora

Natal, o mais importante legado

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Natividade na Maestà de Duccio, século XIII

O que é que se terá passado de tão espantoso há cerca de dois mil e vinte anos no Médio Oriente ali para os lados da Palestina, que nos continua a emocionar, que persistimos celebrar e chamar Natal? O nascimento de Jesus Cristo, que não foi apenas o princípio duma religião universal, mas, estou em crer, a inspiração para os maiores prodígios civilizacionais que se sucederam a seguir no Ocidente.

Hoje queria falar do Natal especialmente aos não crentes, àqueles que mesmo assim o celebram sob os mais variados rituais e pretextos. Aflige-me que, numa Europa cada vez mais laicizada, se vá perdendo a memória da razão inicial: o nascimento daquele menino que há mais de dois milénios interpela milhões de pessoas a n’Ele se reverem, amadas, livres e inteiras. A fortuna da privação, esplendor do humilde, a força do frágil, o poder da delicadeza, a gradeza do que se faz pequenino. Talvez porque nele somos convidados a participar na sacralidade daquela vida prometida, encorajados a usar a cabeça erguida, como bem-amados que afinal todos somos. Como Deus encarnado numa frágil Criança, que atraiu e fez pasmar os reis e pastores que se dispuseram a seguir a estrela à sua descoberta. Um verdadeiro prodígio que há dois mil anos continua a atrair a humanidade, mesmo que não o saiba. É na descoberta dessa singularidade que se vai edificar o Homem Novo, pelo livre-arbítrio potenciador duma dignidade imperiosa, até no assumir da sua fragilidade. É sob esse pilar que se edificou a civilização ocidental.

“Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz” disse Jesus já no final da sua caminhada terrena. As tréguas são o maior e democrático milagre que concede o Natal a todos os homens e mulheres de boa vontade, sejam crentes ou não crentes, como que um antídoto ao cinismo. Mas essa mensagem já estava no Presépio, no princípio duma nova era para a humanidade – que até fez mudar o calendário. Recado daquela primeira Sagrada Família que, longe da sua terra, na falta duma hospedaria, se fez ela própria casa, acolhimento e conforto.

Esta é uma mensagem irresistível a quem, apesar da vida dura e das cicatrizes acumuladas no coração, nele mantém uma pequena réstia brilho – é para esses que escrevo. É uma mensagem revolucionária aquela que nos traz o Menino Jesus: a do escravo finalmente liberto das prisões interiores e exteriores, senhor das suas escolhas e responsável pelas suas acções. É esta mensagem que está na base da civilização que recebi de legado – feita de pessoas capazes de se curarem e reconstruirem de dentro para fora.

O Natal é o prenúncio do Novo Mandamento: «Amarás o teu próximo como a ti mesmo». É pela adesão a esta revolução que o Natal interpela tanta gente – que mesmo sem saber, nesta quadra está a comemorar o Presépio de Belém. Quantos mais se conseguirem dar desprendidamente, mais todos recebem – é o desafiante paradoxo.  Ainda vai a tempo de montar um em sua casa. Afinal, o Presépio é o mais valioso património cultural do Ocidente.

Um Natal Feliz para os meus leitores

Artigo publicado originalmente no Observador

Trincheiras

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Chamou-me a atenção no passado sábado (sim, continuo a ler o Expresso aos sábados) o artigo da Eugénia Galvão Teles que fazia referência aos resultados de um estudo de uma equipa de economistas sobre a importância do “Capital Social” (a rede de relações) feito através da análise das amizades de 72 milhões de americanos no Facebook publicado na revista “Nature”. Acredito que com gráficos coloridos e números minuciosos a evidência da relevância do meio que cada um frequenta para o seu sucesso ganhe outro brilho, no caso um “fundamento científico”. É sob esse mote que a autora reclama a legitimidade das famosas quotas no acesso ao ensino superior para as escolas dos bairros desfavorecidos. Ainda na área do ensino, que é supostamente o principal campo de batalha para a mobilidade social (não caí no erro de escrever luta de classes), a cronista bate-se na defesa dum ensino público interclassista, porque “os mais prejudicados com o desaparecimento dos mais ricos da escola pública são os mais desfavorecidos”. Nada mais verdadeiro: em termos práticos quer dizer que urge promover, portanto, a liberdade de escolha no ensino. Ao contrário, tudo o que a marca socialista nas nossas políticas tem feito nas últimas décadas em Portugal vai no sentido da consolidação dessa estratificação social, dividindo os mais pobres e os menos pobres entre escola publica e privada. É disso exemplo a extinção progressiva dos contratos de associação do Estado com as escolas privadas, que as tornava acessíveis aos mais desfavorecidos – uma bandeira do governo da geringonça.

Essa estratificação social tem-se vindo a agravar de tal forma que suspeito que para muita gente com menos de quarenta anos seja difícil de acreditar que eu, um autêntico “menino família”, no final dos anos sessenta tenha frequentado a 1ª e 2ª classe na Escola da Câmara n. 6 em Campo de Ourique (paredes meias com o Casal Ventoso) e a 3ª e 4ª classe na Escola n.º 68 da Rua da Bela Vista à Estrela. Isto pela altura da reforma do ministro Veiga Simão, quando há muito a primária era obrigatória e estava universalizada, se não em Portugal, pelo menos em Lisboa. Escusado será dizer que isso acontecia com bastante normalidade no meu meio social, solução vista nas grandes famílias como uma forma de nos preparar para a “vida real”. O bem que me fez e os amigos que ganhei.

Outra instituição de particular importância na “miscigenação” social que também não é muito querida dos poderes em voga é a Igreja Católica, que ao contrário de algumas caricaturas sempre foi um espaço interclassista e intercultural. Nas paróquias, toda a sorte de actividades, desde a catequese aos retiros espirituais, passando por peregrinações ou campos de férias, sempre me pareceram espaços profundamente interclassistas, duma mistura saudável de diferentes sensibilidades e vivências. Sendo também possivelmente do desconhecimento das actuais elites nas suas bolhas, nos dias de hoje, no nosso país, à frente de algumas comunidades paroquiais, podemos encontrar padres de diferentes etnias, africanas ou orientais, espelho de uma diversidade social e étnica que se estende aos fiéis que as frequentam. De resto, todos os grupos de interesses, mais ou menos formalmente associados, continuarão sempre a tudo fazer para subir a escadaria do poder, favorecendo relacionamentos endogâmicos. Por exemplo, não conheço grupo social mais estratificado e preconceituoso que o académico, mas será injusto não referir muitos outros, sejam de advogados ou economistas, que cuidadosos nas suas ligações pessoais se promovem mutuamente, na ânsia de reconhecimento ou promoção social – é da natureza humana.

O que me parece certo é que em Portugal é difícil encontrar pessoas descomplexadas e descomprometidas com os corredores do poder – somos pobres e mal-habituados. E o pior é que neste nosso mundo hedonista existem cada vez menos pessoas que percebam qual é o poder que realmente conta e verdadeiramente liberta. Esse problema não se resolve com enfáticas denúncias, decretos ou medidas ortopédicas. Só através da mudança do coração de cada um. Para explicar isto não são necessários gráficos e dados estatísticos, talvez baste perceber o verdadeiro sentido Natal.

Tenho pena que o artigo da Eugénia Galvão Teles, que é uma pessoa civilizada, não tenha ido por aí.

Desenho de Pawel Kuczynky, daqui

Entre as brumas da memória

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Sendo a nossa vida terrena, mais do que limitada pelo tempo, limitada pelas memórias que guardamos depois de adquirirmos consciência, estou convencido de que a existência de cada um ganha um alcance temporal superior se adicionarmos à razão outros sentidos como o da intuição. Onde eu quero chegar com este raciocínio extravagante? Quero dizer-vos que, se formos dotados com curiosidade suficiente e tivermos convivido com intimidade com pessoas mais velhas que nós, conhecido de perto os seus ambientes e realidade circundante, hábitos, costumes e acontecimentos marcantes – históricos e familiares, conseguimos ter intuitivamente uma perna na sua época. Explico-me: o meu pai nasceu em 1937, cresceu numa casa que conheci bem, desvendou-me os seus livros, filmes, e músicas preferidas, além dos acontecimentos políticos nacionais e mundiais que o afligiram. Por outro lado, conheci o liceu que frequentou, muita da iconografia que o rodeava chegou ao meu conhecimento, desde automóveis e autocarros em que ainda andei, revistas juvenis como o Cavaleiro Andante ou a Fagulha, e muitos dos filmes que viu na infância ou juventude. Como eu mais tarde, viu as primeiras grandes metragens da Disney que o encantaram, o “Feiticeiro de Oz”, ou “E Tudo o Vento Levou”, e muito Charlot, Looney Tunes e canções francesa. Sei como admirava a beleza de Rita Hayworth ou Lauren Bacall que aos meus olhos é muito compreensível. Ainda hoje me comovo a ver “Breakfast at Tiffany's” uma fita que ele adorava, com a Audrey Hepburn no sue auge. Esse filme foi estreado no ano em que nasci, acontecimento de que não tive qualquer consciência – não basta estar vivo para ter a noção de algo que acontece. Aliás, dos primeiros anos da minha vida a maior parte das memórias são emprestadas – tenho uma vaga ideia de assistir a um jogo do Mundial de 1966, julgo que na casa duns amigos dos meus pais – nem toda a gente tem a memória prodigiosa de José Sócrates.

A pessoa mais “antiga” que conheci foi a minha bisavó Valentina da Silva Leitão, que nasceu em 1888 e morreu em 1973 quando eu tinha 12 anos. Convivemos muito, na sua casa, na Avenida da Liberdade 232, no andar que estreou em 1892 – aquelas paredes testemunharam a angústia do regicídio, a revolução dos republicanos, muita correria e tiros na rotunda. A Avó Tina, como lhe chamavam os netos, gostava muito de contar histórias que eu ouvia com atenção, enfeitiçado com as suas mãos deformadas pelo reumático. Muitas outras histórias me eram transmitidas nos salões daquela casa onde a sã conversa era cultivada. A curiosidade, os livros, fotografias e muitos testemunhos que me chegam fazem com que consiga meter um pé bem no início do século XX. Tenho um recorte de jornal que noticiava que ela partira um pé num passeio a cavalo ali para os lados da Ajuda, com o avô José com quem namorava. Como era regra de uma menina bem-educada daquela época, depois de ficar precocemente viúva levou uma vida austera, cuidando da sogra e da grande casa, não mais tendo vestido roupa colorida. Católica devota, assistiu ao milagre do Sol a treze de Outubro de 1917 em Fátima, acontecimento que gostava de relatar, e o seu mundo misturou-se desse modo com o meu. Nele penetro em peças ultra-românticas do final do século XIX, através de imagens pias de Nossa Senhora ou do Sagrado Coração de Jesus a preto e branco, ou através dum disco de goma laca de 78 rpm que nunca ouviu na juventude porque não era dada a extravagâncias.

Para trás dessa geração tenho dificuldades intransponíveis de imiscuir a minha imaginação, a minha vida não chegou lá. Não recebi directamente relatos ou memórias, não experienciei nada daquelas realidades. Só lhes acedo através das pedras puídas da cidade, dos livros ou em imagens estáticas, solenes, sem afectos. Sem deixar de ser fascinante, a informação passa ao âmbito da História, longínqua e obscura para os meus sentidos.

Esta é uma teoria em que venho reflectindo e que achei interessante partilhar com os meus leitores: sem prejuízo do fascínio do desafiante presente, até onde no tempo cruzámos afectos e experiências a nossa alma alcança, como se tivéssemos lá estado. Apesar de ter nascido apenas em 1961, a minha consciência – intuição? – chega bem mais lá atrás. Uma vida que se alonga longa, portanto. Já para o futuro a viagem é impossível, com a certeza de que nos enganaremos sempre nas previsões, pois não privámos com ninguém vindo de lá.

Na imagem: Os meus bisavós Valentina e José (Condes de Castro) com o meu avô e padrinho homónimo pela mão, com o seu basset em 1911 passeando na Avenida das árvores na Granja

Viva Portugal

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Aos mesquinhos pequeno-burgueses mestres da má-lingua e do azedume: se formos justos, o rasto de civilização pelo mundo afora deixado na história por Portugal vale bem mais que o novos-riquismo de muitos chocolates e relógios suíços - os alienados são vocês.
Sábado é para ganhar aos infiéis, que teremos meia portugalidade, das Índias aos brasis, de olhos postos nesse jogo de futebol.