Um grito d’ alma
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Mesmo dando de barato que a redacção do Observador não tem em boa conta o meio católico em geral e os católicos em particular, este artigo do jornalista João Francisco Gomes, o editor de assuntos da Igreja, deixou-me perplexo. Não disfarça, com julgamentos explícitos ou nas entrelinhas, a condenação de quem tenha assumido uma visão crítica ao relatório da Comissão Independente (CI), adjectivados como conservadores (uma desqualificação, não um elogio, entenda-se) sugerindo que são inspirados por uma força malévola para descredibilizar o documento. Mas, permitam-me que pergunte: não é próprio de um bom jornalista pôr em causa um documento desta importância e complexidade, ou será o relatório da CI um Dogma de Fé? Ninguém estranha a unanimidade reafirmada por todos os poderes instalados, incluindo os jornais de referência que deveriam ser o esteio do pluralismo numa democracia desenvolvida?
Ao contrário do João Francisco Gomes eu compreendo muito bem que, aqueles que são católicos de corpo e alma (cujo catolicismo não é um mero emblema, uma cultura, mas uma vivência de fé em comunidade) se revoltem, não só contra os judas seus pares que pelo hediondo pecado de traição conspurcam a Santa Igreja Católica, mas contra aqueles que a pretendem condenar, num estranho julgamento sumário, de dezenas de sacerdotes e leigos sem direito à presunção de inocência. E não, Sr. Jornalista, não se verificou “um ataque cerrado” ao relatório, antes pelo contrário, como demonstra o seu artigo: foram muito poucas as vozes livres que se atreveram a exercer um mínimo de contraditório que o documento, não sendo sagrado, merece. Também compreendo que João Francisco Gomes se admire com estas “opiniões individuais, que contrastam com o posicionamento oficial dos bispos portugueses”. Acontece que a Igreja, ao contrário das redacções dos “jornais de referência” e da do Observador em particular, é mesmo plural - nela convivem diferentes sensibilidades e opiniões. Pela minha parte, que por vezes erradamente, por deformação profissional me preocupo demasiadamente com a imagem (das pessoas, empresas ou instituições), defendi que o momento do indigesto confronto com o relatório, não fosse apropriado à critica pública pelos católicos das suas manifestas fragilidades. Isto porque acreditei que tal debate se transformaria numa luta na lama com resultado predeterminado pela turba revoltada (leia-se comunicação social). Porque para tal desfecho indecoroso para nós católicos, como referia a citada Mafalda Miranda Barbosa, bastava "um só caso de pedofilia ou de abuso sexual mesmo de maiores levado a cabo por um sacerdote é motivo de escândalo, devendo ser tratado de forma exemplar pela justiça dos homens e no seio da Igreja, tal o mal que por meio de um só caso se provoca nas almas". Acreditei que o passar do tempo, - enquanto os organismos da Igreja apuram métodos e procedimentos que melhor os permitam prevenir o infiltrar de tarados que com o seu pecado traem a nossa Igreja - passada a emotividade do choque dos relatos, tenderá a aclarar a verdade e a iluminar a santidade da sua obra no meio dos mais simples e carenciados de redenção, pão e sentido existencial.
Graças a Deus possuo a liberdade de, por exemplo, duvidar que a hierarquia da Igreja deva suspender os mais de cem padres no activo suspeitos, segundo Pedro Strecht, apesar de maioritariamente denunciados por anónimos sem que tenham tido direito à defesa da sua honra e a uma culpa formada. Que devam ser acompanhados enquanto se apurar a verdade dos factos não me restam dúvidas, mas menos duvidas tenho de que os direitos humanos também se aplicam a um Padre, qualquer um, que por estes tempos sofre com o estigma instalado. Como me dizia há dias nas escadas um vizinho meu que é psiquiatra reformado e com simpatias pelo BE, "a padralhada meteu-se com os psiquiatras, agora levam na tromba".
Viciados em escândalos evitamos olhar para os factos num modo critico e exigente que é como o deve fazer quem pretende verdadeiramente enfrentar os problemas. De facto, de onde viria maior escândalo do que a descoberta de que, também dentro duma instituição histórica como a Igreja Católica, aconteceram crimes hediondos como o da pedofilia? O escândalo não resolve mas proporciona muitos cliques, popularidade e audiências, emoções ao rubro. Escândalos que se consomem com voracidade nas redes sociais, distraem as pessoas, na ilusão de que a perversidade e a corrupção é problema dos outros. Ajudam-nas a sentirem-se melhores. Os escândalos alimentam sempre os credíveis “impecáveis”, afinal meros “fariseus” como os apelida o Pe. Pedro Quintela na homilia do Domingo 19 de Fevereiro passado, citada pelo João Francisco Gomes que, na indisfarçável ânsia de a condenar não parece ter-lhe captado a irreverência, profundidade e alcance - um grito de alma. O coração aberto às razões dos outros é virtude dos mais nobres.
Aí nessa poderosa e controversa homilia, refere o Pe. Pedro Quintela um ângulo não despiciente da questão: “esse «poder sem face» tem conseguido colar a Igreja, o seu clero e as suas práticas, rituais e instituições a uma cambada de tarados e de lugares sinistros. Ora o que o poder pretende é que da identificação da Igreja com tais horrores, decorra a insignificância, a impotência, e o desprezo por qualquer coisa que a Igreja tenha a dizer sobre o Homem e a organização da sua vida em sociedade: aborto, eutanásia, fantasmas sobre o que é ser homem ou mulher, família tradicional, novas configurações da mesma nascidas da perda do centro, tudo isso deixa de poder dialogar com o pensamento católico, a quem não se deixa de colar a pequeníssima parte como expressiva de um todo sistémico. E eis que aí estão de novo à solta velhos ressentimentos anticlericais a pedir que se esmague a «infame»: a Igreja”. Dito isto, não se interrogou o jornalista sobre os propósitos do esquisito inquérito efectuado pela C.I. aos bispos e consagrados(as) sobre as suas origens sociológicas, perfis psicológicos e consequentes comentários às indumentárias usados e modos de estar a fazer lembrar os velhos interrogatórios “científicos”? A mim fez-me lembrar métodos hediondos, quando não a escola da Antropologia Criminal, fundada por Cesare Lombroso (1835 / 1909) adoptada em Portugal pelos republicanos na criminalização dos jesuítas após o 5 de Outubro de 1910. Encolhemo-nos, rebaixamo-nos na consciência do nosso pecado, e em pouco tempo os “impecáveis e bem vistos” dançam sobre os nossos ossos.
Estarei a ser injusto ao centrar este meu texto na crítica a um artigo (e a uma linha editorial que deploro) do João Francisco Gomes, que sendo editor nas questões ligadas à Igreja não demonstra a mais pequena sensibilidade para com o tema. Mas não posso deixar de referir aqui a infeliz crónica do João Miguel Tavares, jornalista que admiro, genericamente pelo seu profissionalismo e capacidade de análise de temas complexos, em que, na critica a um artigo do Pe. Gonçalo Portocarrero de Almada no Observador, cuja opinião me pareceu bastante equilibrada (não temos de concordar em tudo), usou de recursos estilísticos ofensivos que me pareceram inapropriados duma pessoa da sua craveira intelectual, para mais reclamando-se católico.
Mal de nós quando nos surpreendermos com vozes que permanecem independentes e livres no nosso espaço público – é feio atiçar-lhes a turba. Mal de nós quando não nos inquietamos por uma interpretação unívoca de um determinado acontecimento ou a ela cedemos por comodismo ou ambições pessoais – é franquear as portas à estupidificação, e de caminho às mais cobardes tiranias das multidões. Por isso não desisto da minha Igreja a que pertenço com alegria. E, sobre aquilo em que acreditamos ser importante para as nossas vidas e dos nossos filhos, não nos calaremos.