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João Távora

Teremos sempre Paris...

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A ânsia sanguínea de aproveitamento político do hediondo crime de Abdul Bashir - estrangeiro, afegão, muçulmano - por parte de André Ventura só tem paralelo com o denodo da comunicação social respondendo-lhe a deitar água na fervura com a vitimização do refugiado, afinal assassino das duas jovens mulheres, potenciando uma reacção ao contrário. Nestes padrões salta à vista a grande fragilidade da democracia, avessa à complexidade e refém de emotividades e excitações, vulnerável aos clichés de cada momento. É difícil lidar com excitação à volta da fixação dos preços nos supermercados, da condenação dos Padres por pedofilia, das casas devolutas por maldade do senhorio o medo dos estrangeiros miseráveis. A exploração de sentimentalismos é tentação em tempos de decadência que atrai mais justiceiros que a necessária racionalidade.

Pior mesmo são as agendas mal disfarçadas. Ou que a Comunicação Social supostamente séria não perceba quão voláteis são os instintos da turba. Do mesmo modo acho estranho que os jornalistas ditos “sérios” se recusem a olhar sob diferentes ângulos o relatório da Comissão Independente e as perversas consequências que dele emergem. Os populistas usam a mesma técnica para públicos mais ou menos básicos, alimentando-os dos bodes expiatórios de ocasião, sacrificados na fogueira da praça pública para alívio das suas frustrações e pobres vidas. O André Ventura pretende ganhar votos, a Comunicação Social audiências, de pessoas zangadas ou com medo.

Quando a tensão chegar ao máximo e a rua imperar, a primeira coisa a ceder será a liberdade que tomamos por garantida. Ou o Terror de Paris.

Imagem daqui

Sobre a monarquia, uma obra de fôlego

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“Monarquia - História, doutrinas e heranças” é escrito por Carlos Maria Bobone que é filho de um dos meus maiores amigos, facto que apenas denuncia que já não vou para novo. Também não é por isso que nos últimos dias me embrenhei na leitura deste livro: com responsabilidades no meio monárquico a sua leitura era-me obrigatória. Afinal o livro é um minucioso ensaio sobre as origens, desenvolvimento, derivações deste sistema de governo com raízes nas primeiras sociedades tribais. Se por um lado a obra, mais especificamente nas páginas em que o autor discorre sobre as monarquias parlamentares, pode desiludir os monárquicos “militantes” que, como eu, despendem muita da sua energia a valorizar a Instituição Real nos países ocidentais como elemento mitigador dos vícios do niilismo democrático, constitui uma preciosa tese filosófica e historiográfica sobre este sistema de organização política profundamente versátil e, afinal de contas, resistente. Um reconhecimento de como a infiltração dos princípios monárquicos (no sentido clássico do "poder de um só" que é disto que a obra essencialmente trata) noutras concepções do mundo e noutras ideias políticas hoje em voga, porque “a história da política no Ocidente é também uma constante recuperação de alguns dos princípios monárquicos considerados caducos ou ilegítimos, que os governos recuperam de forma mais ou menos camuflada”. Mas tudo se inicia nas sociedades tribais, na génese do conceito de família com base no casamento, “uma espécie de reconhecimento da igualdade, que ultrapassa a simples relação de poder”, na necessidade de constituição de um modelo de chefia organizado, acima dos clãs. Curiosa a tese devidamente exemplificada com lendas e histórias, do recurso ao “rei estrangeiro”, que chegado de longe com aura de mistério e imparcialidade, pela sua auctoritas irá dar início a uma monarquia primordial.

Das sociedades recolectoras à época clássica, passando pelo pensamento escolástico ao iluminismo, da Revolução Francesa ao liberalismo constitucional, do tradicionalismo de Mauras às repúblicas impregnadas de elementos monárquicos que pretendiam banir, nas 370 páginas de “Monarquia - História, doutrinas e heranças” o Carlos Maria Bobone guia-nos com rara erudição e uma escrita fluida pela história das Monarquias, “não de regime, porque há várias formas de regime monárquico”, pela história do pensamento político e da filosofia, arriscando concluir que “mais do que uma doutrina a monarquia um factor histórico.” E nesse sentido o autor saberá por certo que num país com quase novecentos anos de História como Portugal, independentemente do regime político em vigor, é importante lutar pela valorização da sua Casa Real. Noblesse Oblige.

“Monarquia - História, doutrinas e heranças” por Carlos Maria Bobone, Leya Fevereiro de 2023. À venda aqui

A era do pai

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A maior “revolução” operada na sociedade contemporânea, subtil e orgânica, é aquela que acontece na relação entre o pai e os filhos. Maior do que as conquistas femininas nas suas carreiras, de ministras, deputadas, dirigentes ou simplesmente nos estádios de futebol.

Os sinais de mudança começaram há alguns anos e o meu pai ainda esboçou algum esforço, em desajeitadas mas sinceras expressões de afecto e cumplicidade. Mas a rigidez dos “papéis” estava-lhe demasiado impregnada. Assim como a solidão.

A maior “revolução” dos tempos modernos é a assunção da plena paternidade. Sim! hoje, conhecemo-nos cedo, com a ajuda da pele e de uma cumplicidade morfológica. Com muitas canções, lenga-lengas, fraldas, banhos de banheira,  de mar e de mundo. 

Alcançado tudo isto, que venha a vida toda, os papéis, os "terrores" das adolescências, separações e outras tempestades. Deste modo por certo resistiremos às provas do desamor, e sairemos todos mais realizados e mais fortes... o que já não é pouco. 

Dedicado aos meus filhos e à memória do meu Pai.

Reeditado - Publicado originalmente nesta data em 2012

Canal aberto

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Já tinha saudades de uma noite europeia assim: um jogo com gigantes, transmitido em canal aberto, um golo inolvidável para os anais da história, resolvido a nosso contento na emoção dos penáltis. Uma mistura explosiva em termos mediáticos que promove audiências retumbantes a fazer lembrar um apuramento da selecção no tempo em que só havia um canal e o espectáculo mágico entrava nas casas de toda a gente. Viam-no a família toda: o avô, a mãe e o bebé – não só os aficionados.

Por isso esta manhã, no café e no ginásio, nas ruas, lojas, escolas, fábricas, escritórios e nas paragens de autocarros, toda a gente falava do mesmo assunto: o extraordinário golo de Pote que dá a volta ao mundo, as defesas de Adan, e da exibição dos miúdos do Sporting contra o Arsenal. Nos cafés como nas redes sociais os sportinguistas são felicitados por toda a gente, nacionais e imigrantes, benfiquistas, portistas e agnósticos.

Os sportinguistas mereciam uma noite gloriosa assim. Os seus olhos brilhantes e sorriso discreto nesta manhã não disfarçavam a enorme alegria - notava-se bem. É a nossa mística, um consolo que nos conforta o coração.

Publicado originalmente aqui

Uma dor imensa

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Também eu estou cansado do tema dos abusos na Igreja Católica, o último sítio da terra onde estas perversões se admitiam que acontecessem. Já aqui o disse por diversas vezes: ao longo da vida como crente participei de diversas actividades e movimentos, conheci diferentes paróquias, onde tive a sorte de conhecer extraordinários padres e leigos anónimos, alguns dos quais vieram a revelar-se os meus maiores heróis, invulgares exemplos de vida e doação desapegada aos outros na forma de serviço e persistente oração (uma coisa não é possível sem a outra, garantem-me). Jamais detectei alguma coisa que me parecesse menos própria.

Antes de outra qualquer pertença, a Igreja Católica tornou-se o meu principal reduto. Nessa perspectiva eduquei os meus filhos, porque são a coisa mais importante da minha vida. Isso explica a dor imensa que sinto pelo mal que uns quantos tarados travestidos de cordeiros tenham infligido a pessoas vulneráveis, desde logo crianças. Tudo isto dificilmente me entra na cabeça, e sinto uma enorme vergonha alheia por esses energúmenos, a quem só Deus na sua infinita misericórdia terá capacidade de perdoar, se disso alguma vez se tenham arrependido e emendado. Acredito na Justiça Divina e no Inferno. Evidentemente que a cidade legitimamente exige outra.

Dito isto, não me conformo com o expectável aproveitamento que esta tragédia por estes dias permite a todos aqueles para quem a Igreja não tem qualquer significado ou dela alimentam ressentimentos insondáveis. Diga o que a Igreja disser, faça o que a Igreja fizer, por estes dias estamos reduzidos à chacota e ao descrédito, no mais despudorado desprezo pela realidade: a Igreja é incomensuravelmente maior em bondade do que os pecados de uns quantos traidores, uma diminuta minoria. Para piorar as coisas, muito por conta da sua organização horizontal e autoridade descentralizada numa rede de comunidades – uma fórmula intrinsecamente democrática (inclusiva) edificada ao longo de dois mil anos e que faz inveja ao poder político - jamais conseguirá produzir um discurso unânime, fechado. Não só porque o interlocutor de mediação, a Comunicação Social, nisso não esteja interessada, hipotecada que está na procura de escândalo – como se não bastasse um só caso de pedofilia no seu seio – que alimente as audiências ou satisfaça o secreto desejo de muitos dos seus actores da sua desautorização como ultimo baluarte do contrapoder ao niilismo materialista. Nada disto interessa à nossa imprensa que é espelho da descristianização vigente, vergada ao populismo e ditames da moda, por vocação e necessidade económica. Igreja jamais poderá capitular nesse campo: a família natural e fecunda é constituída por homem e mulher, a vida humana é sagrada da concepção até à morte natural. Aqui vem sendo surpreendente para mim o papel adoptado pelo Observador, projecto jornalístico que um dia nos pareceu reger-se por uma política editorial mais exigente e séria – que sentido fazem os comentários jocosos do Miguel Pinheiro e do Paulo Ferreira a respeito deste tema nas manhãs da rádio? O mesmo que convidarem a economista Susana Peralta a comentá-lo na rubrica da tarde “Directo ao Assunto” na mesma rádio. Uma enorme desilusão.

Mas nada disto disfarça a luta intestina que emerge do seio da Igreja Católica, provinda das suas franjas marginais, à esquerda e á direita (para usar designações simplistas), que em modo duma mal disfarçada guerra civil, se esquecem da prioridade que devia presidir as suas acções e discursos, o da salvação das almas pela unidade de todos os católicos em torno da mensagem redentora de Jesus Cristo. Compreende-se: é inevitável que toda a forma de Poder atraia lutas de poder, quer sejam vindas de fora quer sejam geradas por dentro. A Igreja tem uma longa experiência, fracturas e cicatrizes por conta desse deslumbramento mundano. Não é de surpreender que as reacções ao relatório da CI revelem o despertar ou o reeditar dessas lutas de influência sectária.

Bom seria que todos se unissem à volta do Papa Francisco, o chão comum em que devemos fincar os pés, porque as divisões internas são tão perniciosas quanto os inimigos externos. Por isso, atrevo-me a pedir encarecidamente aos protagonistas de um lado e do outro que poupem os fiéis a mais humilhações. O legado salvífico da igreja de Pedro é demasiado valioso para se conspurcar em guerras de passa culpas e acusações espúrias. A urgente purificação da Igreja não deve deixar ninguém de fora. Como nos revela esta reflexão de Adriano VI em 1523 *, ao tempo da cisão protestante:

“Nós reconhecemos livremente que Deus permitiu esta perseguição da Igreja por causa dos pecados dos homens, particularmente dos sacerdotes e prelados. A mão de Deus, de facto, não se retirou e ela pode salvar-nos. Mas o pecado separa-nos d’Ele e impede-O de salvar-nos.

Toda a Sagrada Escritura ensina-nos que os erros do povo têm a sua fonte nos erros do clero... Sabemos que, desde há muitos anos, também na Santa Sé foram cometidas muitas coisa abomináveis: tráfico de coisas sagradas e transgressões dos mandamentos em tal medida que tudo se tornou um escândalo. Não nos podemos espantar que a doença tenha descido da cabeça ao corpo, dos papas aos prelados. Todos nós, prelados e eclesiásticos, desviámo-nos do caminho da justiça. (...)

Cada um de nós deve honrar a Deus e humilhar-se perante Ele.
Cada um de nós deve examinar-se e ver em que pecado caiu.
E deve examinar-se muito mais severamente de quanto não o será por Deus no dia da Sua ira.
Consideramo-nos tanto mais comprometidos a fazê-lo porquanto o mundo inteiro tem sede de reforma”.

* Transcrição roubada ao meu querido amigo Pe. Pedro Quintela, daqui

Imagem: ruínas da Basílica Patriarcal de Dom João V depois do Terramoto

PS - A quem possa interessar, aconselho vivamente a leitura desta pequena entrevista a Felícia Cabrita, a  primeira jornalista a denunciar os casos de pedofilia na Casa Pia, em 2002. Ainda há gente com coragem.

Do cancelamento à luta de classes

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Que o mundo em que vivemos neste lado do planeta cada vez mais se parece com um manicómio, não será novidade para ninguém, mas mesmo cansados de tanto espanto talvez continue a valer a pena questionarmo-nos. Por exemplo: já repararam como aquela moda dos filmes negros norte-americanos com diálogos cheios de vernáculo de teor sexual, ao pior estilo das prisões penitenciárias, extravasou as fronteiras e se vem alargando ao cinema e televisão mainstream? No meio desta onda puritana com tanta gente tão sensível e ninguém reclama das séries e filmes onde por estes dias a linguagem falada está ao nível mais rasteiro e agressivo, seja pela boca dum príncipe ou duma meretriz? Obviamente nada tenho contra o calão e também nada me chocam os mais duros palavrões, desde que no devido contexto - possuem propriedades libertadoras quando usados com parcimónia. Ora, as palavras têm significados; por mais que se vulgarizem os palavrões, eles possuem um significado, expressam uma acção, com um potencial de chamar a atenção pelo “escândalo”. Se essa terminologia, tremendamente agressiva for usada com insistência, o seu efeito semântico perde-se, a não ser que o fim pretendido seja a expressão de uma identidade grupal – “eu falo assim porque é assim que se fala no meu grupo, com quem eu me identifico e onde eu pertenço”. Será isso que acontece com os grupos de jovens adolescentes ou em certos meios portuenses: estou convencido que muitos tripeiros recorrem àquela terminologia sem lhe atribuir qualquer significado. No entanto convém não esquecer que as palavras comportam significados e que servem para nos entendermos uns aos outros, para o bem e para o mal. Gritar uma blasfémia quando espetamos o dedo pequeno do pé na ombreira da porta é a legítima expressão de um compreensível estado de espírito. Ora, se se repetir recorrentemente a blasfémia, que expressão se irá usar numa situação de choque ou de dor?
 
Preocupa-me que a agenda puritana e literalista de controlo da linguagem tenha origem nos mesmos que pretendem normalizar a obscenidade e o vernáculo
. É um caminho de empobrecimento, um retrocesso ao mais básico da humanidade, onde deixa de ter importância o bem ou o mal, muito menos o feio e o belo, ou a complexidade trágica da humanidade. Ficam só sentimentos voláteis e sensações de circunstância.
 
Ao eliminar-se a sofisticação e a classe chegaremos finalmente à almejada sociedade sem classes. Deve ser isso.