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João Távora

Miguel Esteves Cardoso, a minha homenagem

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Se eu fosse um bom escritor, ou simplesmente um escritor de sucesso, se começasse a ser alvo de muitas homenagens, ficava desconfiado. Ia logo fazer um check up ao hospital e dobrava o valor do meu seguro de vida. Digo isto a propósito das homenagens que ultimamente se vêm fazendo ao Miguel Esteves Cardoso (MEC); primeiro em Abril com o Grande Prémio de Crónica e Dispersos Literários, da Associação Portuguesa de Escritores e mais recentemente no fim de semana passado, no Festival Escritarias em Penafiel, onde lhe foi prestada uma justa homenagem, acontecimento que o Bruno Vieira Amaral descreve nesta divertida crónica. Tenho para mim que, merecedor de homenagem é qualquer escritor que, em Portugal, tenha vivido da escrita uma vida inteira.

Estava eu em plena adolescência quando o MEC despontou nos jornais. Tomei contacto com as suas crónicas primeiro na revista Música & Som finais dos anos 70 e algum tempo mais tarde no jornal Sete. Além de desvendar à rapaziada cá do burgo pérolas desconhecidas da Pop anglo-saxónica, fazia-o com uma inaudita irreverência, que a sua escrita elegante salientava. O seu estilo, bem-humorado, desavergonhadamente auto-referencial, era pleno de sarcasmo e de assumidas contradições. Era uma linguagem que caia bem a um miúdo de 17/18 anos como eu e, mais importante, era uma pedrada no charco do estilo cinzento e demasiado formal que as redacções progressistas traziam agarradas do tempo do Estado Novo. Quase todos os artistas a quem MEC teceu loas e jurou amor eterno foram esquecidos pela implacável passagem do tempo. Era afinal só música Pop.

Depois veio o Expresso, o sucesso da coluna “A Causa das Coisas”, que em tempos de alguma prosperidade, da generalização da TV a cores foi abraçada fanaticamente por uma recém-chegada burguesia sôfrega por novas referências estéticas e comportamentais, entediada da interminável revolução, definitivamente sem amanhã e sem cantares. Veio o tempo de O Independente, que desvendava uma direita em T-shirt e calças de ganga, que chegou com o sucesso do Rock Português e do Herman José, e muitos liberais em mangas de camisa recém-licenciados – estava enterrada a revolução e era permitido aos “reaccionários” finalmente entrar na festa, beber uns copos e dançar no Bananas ou no 2001. Desses tempos alucinantes, guardo com especial saudade a campanha Eleitoral que o MEC protagonizou em 1987 como cabeça de lista do PPM por um lugar no Parlamento Europeu. Apesar da sua total falta carisma na rua e de jeito em frente às câmaras de televisão, a sua eleição esteve por um fio com os votos nas cidades. Foi uma campanha alegre, que teve por mérito tirar a gravata e o bigode retorcido ao cliché dos monárquicos cuja mensagem nesses dias passou bem-humorada e rejuvenescida. A ideia de monarquia também pode ser Pop.

Confesso que comprava quase todas as semanas o jornal O Independente e ainda hoje guardo uma colecção completa da revista K, tenho na minha estante várias colectâneas de crónicas que convidei os meus filhos a ler, e no Natal passado deleitei-me a folhear a edição revista e aumentada da Escrítica Pop. Mas nas últimas décadas deixei de seguir o MEC, cuja escrita deixou de me interessar. Confesso que esperava muito mais desta estrela da minha juventude, que acabou por se parecer demasiado com a maioria das estrelas Pop que se esquecem, na melhor das hipóteses em duas gerações. Desconfio que o nome de um grande escritor só sobrevive se mergulhou nos incontornáveis temas da tragédia humana.

Dizem que a culpa da desilusão é de quem se deixa iludir, e eu concordo. O que é certo é que as horas de prazer de leitura que o MEC me concedeu, essas, a mim ninguém me tira. Estou convencido de que um niilista como o MEC não se chocaria nada com esta minha perspectiva.

Obrigado por tudo, Miguel.

Salvação

A grande ilusão do Ser Humano sem Deus é a sua constante busca de redenção através da História, num futuro acessível. Só há uma coisa pior que a desconcertante e trágica natureza humana: aqueles que acham possível mudá-la através da lei ou de sistemas políticos. A salvação é um processo pessoal, íntimo.

Um casamento para o bem comum

uma questão de meta-política

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As notícias do primeiro casamento na Casa de Bragança em mais de 25 anos em Mafra, no próximo dia 7 de Outubro, acontecendo numa democracia liberal do Ocidente, naturalmente causaram alguma polémica e indignações, principalmente visíveis em certos bas fonds das caixas de comentários e redes sociais. O fenómeno demonstra duas coisas: a primeira é que, como todos já sabemos, a conjugação da indolência do sofá com o anonimato, favorece destemidos revolucionários de teclado, expelindo aleivosias, convencidos que arremessam cocktails molotov - antes assim. A segunda coisa é uma particularidade portuguesa bem triste, herança da escola jacobina francesa: a inveja e o ressabiamento social, cultivados com afincada raiva no início do XX, que deixando um rasto de sangue, os nossos extremistas sempre souberam utilizar com perícia. Curioso é como, enquanto na maior parte do Ocidente civilizado se discutiam e se confrontavam as ideias liberais com o dealbar das soluções fascistas e comunistas, neste jardim à beira-mar plantado, a fractura política dominante tinha como tema, sempre acirrado, o rei e a monarquia, cuja remoção tudo iria resolver, e a Pátria iria resgatar em “amanhãs que cantam”. Não cantaram, como bem sabemos.

Uma pequena dose de realismo e interesse pelos fenómenos políticos e sociais da actualidade retira qualquer veleidade ao mais fervoroso monárquico (como eu sou) da expectativa duma mudança de regime de Chefia de Estado em Portugal. Para mais duvida-se muito que fosse simplesmente a existência de um rei, mesmo que o seu nome fosse Sebastião, que viesse resolver as contradições e desafios em que o país se afunda mais e mais a cada ano que passa. No entanto, tenho a certeza que o casamento da Infanta D. Maria Francisca com Duarte de Sousa Araújo Martins daqui a dias, não sendo contra ninguém, possui evidentemente um inevitável conteúdo político. A afirmação da Casa Real Portuguesa entre os portugueses é perfeitamente compatível com as instituições da república. Talvez que a república, com a atenção que lhe deveria merecer a res publica sempre defendida pelos nossos reis, devesse aceitar como um activo a sua convivência com a Casa Real Portuguesa e o seu inequívoco papel unificador da sociedade portuguesa. Sou há muitos anos testemunha da forma calorosa e entusiástica como as nossas gentes sempre recebem a Família Real nas suas freguesias e municípios, mesmo quando administradas pelo Partido Comunista.

Nesse sentido veja-se por exemplo o fenómeno de afirmação da coroa romena nas últimas décadas, pairando acima da república que nos anos 90, com várias nuances e progressivamente ocidentalizada, substituiu a tirânica ditadura comunista de Ceaușescu. Este caso deveria fazer-nos pensar. O carismático Rei Miguel (1921 — 2017), expulso da sua pátria em 1947 pelo governo pró-soviético, teve um papel fundamental para que tal acontecesse. Autorizado a voltar à Roménia em 1992, só em 1997 recuperou a cidadania romena que lhe havia sido retirada pelos comunistas. O sucesso do seu regresso culmina em 2011 quando foi convidado a discursar na abertura do parlamento romeno instituído pela constituição republicana de 1991. Reduzindo progressivamente a intensa vida pública por causa da sua idade avançada, o Rei Miguel teve sempre o apoio da Princesa Margareta que com ele palmilhou o caminho de reafirmação institucional da Casa Real Romena. Hoje ela é reconhecida como elemento agregador da nação, fruto da incansável dedicação ao seu povo, expresso através da constante presença no meio da população e no apoio às comunidades. Nesse sentido, como reconhecimento inequívoco da sua relevância pelo Estado, foi devolvido à Família Real o Palácio Elisabeta, sua residência oficial em Bucareste.

Como referiu o insuspeito presidente francês Emmanuel Macron em Julho de 2015 numa entrevista, “a democracia comporta sempre uma certa incompletude, porque ela não é suficiente por si só", e prosseguia: "Há no funcionamento da democracia uma ausência. Na política francesa, essa ausência é a figura do rei, do qual eu acredito fundamentalmente que o povo francês não quis a morte. O Terror [período subsequente à Revolução Francesa] criou um vazio emocional, imaginário e colectivo: o rei já cá não está!" Quantas vezes o presidente Macron deve ter relembrado estas palavras durante as insurreições recentes em França…

Esperemos que Portugal não tenha de chegar ao estado a que conduziu o regime comunista a Roménia, para darmos mais valor a uma instituição como a Casa de Bragança e as suas raízes profundas que nos conduzem à fundação da nacionalidade. O casamento em Mafra no próximo dia 7 de Outubro é muito mais que um evento social e mediático. É um passo na elevação dos portugueses a um patamar de civilização, tolerância e erudição, como comunidade ciente do valor da sua história e dos seus símbolos. Um Portugal de rosto humano, representado por uma Família a quem sucessivas gerações conheceram a história, a bravura, os acidentes e contradições, no moldar durante oito séculos deste projecto improvável que é o nosso pequeno país. Uma questão do foro da meta-política.

No dia 7, em Mafra, temos razões para festejar.

Na imagem: monograma dos noivos desenhado por Luís Camilo Alves, ilustrador oficial do Instituto da Nobreza Portuguesa.

Publicado originalmente no Observador