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João Távora

Amanhã lembrem-se da liberdade

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Ponhamos a coisa de forma clara: o 25 de Novembro veio pôr termo a uma deriva tirânica, a uns tempos agrestes e sombrios em que Portugal estava refém de novos déspotas – a esquerda radical de então e de agora. Punha-se fim a uns tempos em que quase toda a comunicação social estava nacionalizada ou silenciada, desde logo a rádio e a televisão cujas audiências eram o país inteiro – só havia na verdade um operador, instrumento do novo poder. O discurso no espaço público era unívoco em torno da inevitável “democracia popular” que os comunistas nos queriam impor para evitar eleições. Aqueles programas culturais, de comentadores e de debates, passando pelos telejornais eram absolutamente monocromáticos, raramente saiam do estilo panfletário esquerdista radical, da incitação ao ódio e à extinção definitiva dos adversários, das vozes que se batiam por uma democracia liberal. Lembro-me bem porque os vivi, eram tempos muito difíceis, a direita liberal ou conservadora tinha gente nas prisões, vivia sob uma pesada intimidação, apadrinhada pelo poder político dum governo dominado pelas tropas revolucionárias, pelo partido comunista e seus satélites. Esse ambiente de medo e intimidação perpassava para a rua, para os cafés, para os empregos, para as escolas.

Sobre o 25 de Novembro, disse Mário Soares mais tarde que “é uma data tão importante para a afirmação da democracia pluralista, pluripartidária e civilista que hoje temos, como a Revolução dos Cravos”. Daí que só podemos concluir que o Partido Socialista, ao rejeitar o legado contra-revolucionário de Jaime Neves num acto de revisionismo histórico sem precedentes, apenas pretende agigantar a sua hegemonia pelo lado extremo e radical do espectro político nacional. A institucionalização da geringonça e a liquidação do centro político – o Chega não é a causa, é consequência.

A divisão acicatada da direita nos dias de hoje que permite a confortável preponderância do PS e dos progressistas no regime, faz-me pensar que talvez fizesse falta a muitos jovens políticos de agora ter vivido em Portugal antes do dia 25 de Novembro de 1975. Para perceberem como existem valores ameaçados mais nobres e perenes pelos quais se baterem, que essa estratégia de puritanismo ideológico fraccionado em camadas, apenas contribui para o crescimento do fosso entre Portugal e as democracias mais maduras dos países desenvolvidos. Tenho pouca esperança que os líderes da direita, - os liberais, sociais-democratas e conservadores - tenham por estes dias vontade real em assumir o papel de adulto na sala. E não é por falta dum Messias, é por falta de vontade.

A paz no mundo

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Por estes dias ouve-se falar muito de paz, da necessidade de paz, do fim das injustiças e da guerra, e eu reconheço que esse é um debate muito estimulante. O problema é que implementá-la à força constituiria sempre uma extrema violência, uma guerra ainda mais atroz. Quase que me envergonho de afirmar que a paz entre os homens é contra-natura. Eu cresci no meio de cinco irmãos, quase com a mesma idade, e sei do que falo. Lembro-me de como o sistema repressivo implementado pelos meus pais nem sempre funcionava como o de um colégio modelar, e que entre nós às vezes armávamos umas guerras intestinas tão acirradas que chegávamos a “vias de facto” – é inerente à espécie humana a competitividade, a luta pelo poder, já para não falar de sentimentos obscuros e outras motivações muito pouco nobres. Além disso a inquietação humana, tanto dá para gestos e criações de grande nobreza como para os mais mesquinhos e destrutivos. Não é invulgar que o excesso de bem-estar em conjugação com o tédio promovam o conflito (a decadência) em todas o género de comunidades. É sabido que quando o ser humano não tem problemas vitais para solucionar inventa-os.

Que a Miss Mundo e poetas entontados pretendam acabar com as guerras é perfeitamente compreensível – até eu se me distrair caio nesse equívoco. Só que eles não entendem que o que desejam é um mundo sem pessoas. Sem pertença familiar, cultural, religiosa, enfim; sem desejo, sem afectos, sem humanidade.  A canção “Imagine” do John Lennon é um logro infantil. Mas não pensem que eu não desejo a paz no Mundo: rezo por ela frequentemente, mas principalmente pela minha paz interior, que também é difícil, mas está mais ao meu alcance. E não precisamos de ir para o Médio Oriente para perceber como é extremamente difícil desmontar os equívocos intrincados e sobrepostos de erros políticos talvez bem-intencionados que ao longo da história cavaram feridas e acicatam ressentimentos, zangas e ódios, por estes dias gravados na pedra. No outro lado de um acto de justiça encontra-se muitas vezes uma brutal injustiça, invisível do ângulo contrário. A história ensina-nos como a arquitectura de uma paz duradoura provém quase sempre duma guerra com um claro derrotado que produza uma narrativa a preto e branco, onde dificilmente cabe um espírito humano, muito menos a história dos povos envolvidos. Depois, a excessiva simplificação de um conflito complexo é a tentação de quem pretende tomar posição nele. Sem o assumirem, os activistas quando reclamam a paz num determinado conflito tomam partido pela capitulação dum dos lados. Vejamos: eu posso em causa própria oferecer a outra face (render-me) para terminar uma determinada contenda que pareça insanável, mas não posso exigir que um terceiro o faça para minha conveniência, ou para conveniência de valores que eu considere superiores.

Assistir a uma guerra é um enorme incómodo para os nossos olhos, é uma aberração para qualquer alma nobre e bem-intencionada. Esfrega-nos na cara como as pulsões de morte convivem dentro de nós, domesticadas e arrumadas numa recôndita prateleira da nossa consciência funcional. Não é difícil, num conflito profissional ou familiar, como os que acontecem aos comuns mortais, adivinhar essa força brutal que habita no fundo de cada um com raízes num indomável instinto de sobrevivência. O melhor mesmo é não submergir nessas águas sombrias.

Só há uma coisa pior que a desconcertante e trágica natureza humana: aqueles que acham possível mudá-la através da lei ou de sistemas políticos. Está mais que provado que a construção de um Homem Novo é um processo por demais sanguinário e violento. O espírito humano não se encaixa dentro dumas talas. Além do mais a verdadeira salvação só será alcançável através de um acto de liberdade – pessoal e intransmissível. Só pretende mudar o mundo quem tem receio de se mudar a si próprio.

Publicado também no Observador