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João Távora

Chega de disparates

Em 1893, num período de grande agitação política subsequente ao Ultimato, à revolta republicana no Porto em plena ascensão do republicanismo em Lisboa, o meu bisavô homónimo João de Lancastre e Távora envolvia-se publicamente numa polémica, através duma carta publicada no jornal “Novidades”, com o presidente do partido Legitimista de que era destacado membro, o Conde de Redinha. Acontece que este tinha publicado dias antes um artigo de fundo no jornal “A Nação” em que defendia existirem “afinidades espirituais” entre “Tradicionalistas” e “Republicanos”, uma “solidariedade moral que a ambos estes partidos assiste para demolirem o sistema que nos rege”. Nesse artigo, entre outras opiniões o conde justificava o 31 de Janeiro como “uma reacção natural contra a decadência que nos atrofia a alma dos portugueses”. Retorquia-lhe o meu bisavô: “Por mim, meu caro conde, além da dedicação inabalável pela pessoa do Senhor Dom Miguel, que na minha família é tradicional, a principal razão que eu encontro de ser legitimista é precisamente por achar nos ideais políticos deste partido a forma mais oposta à republicana, e também por me parecer que os meios de alcançar os fins dum e de outro partido devem ser absolutamente diferentes. Sendo este o meu modo de pensar, resolvo provocar de V. Exa. uma aprovação ou reprovação pública d’estes princípios para justificação do meu procedimento ulterior.” Parecia que se tinha atingido o fundo mais lodoso da baixa política

Escrito isto, não surpreende, portanto, encontrar 17 anos mais tarde o meu bisavô tradicionalista, perante a república implantada na sequência do regicídio, defender as tréguas entre as duas linhagens desavindas: “solução única era refazermos o que a revolução tinha desfeito e repormos tudo como estava, mesmo porque se me afigurava tão mais fácil restaurar um regime caído havia meses do que irmos reatar uma tradição de havia quase um século”. A luta pelas boas causas, a política na sua mais nobre acepção, requer abnegados interpretes com inteligência e sofisticação. Antes perder uma boa causa que a honradez.  

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Vem isto a propósito duma pavorosa imagem alusiva ao Natal com que me cruzei há dias no Facebook dum militante do Chega, que hesitei aqui mostrar, não pela reactividade que irei causar a gente que me é próxima e que sofreu uma vida inteira de humilhação praticada pelos progressistas donos disto tudo, mas pelo profundo mau gosto que ela representa. Esta imagem, suponho que desenvolvida por algum programa de Inteligência Artificial, resulta numa bela metáfora do que é o partido de André Ventura, produto elaborado por um oportunista que teve a genial ideia de trazer para a direita os mesmos métodos que nos habituámos a tolerar nos partidos da extrema esquerda – o aproveitamento dos sentimentos mais básicos da populaça ou simplesmente de gente revoltada com as (muitas) agruras da vida, sem limites de demagogia ou escrúpulos; o aproveitamento “duma reacção natural contra a decadência que nos atrofia a alma dos portugueses”. Não precisamos de atender ao mais gritante no despautério da imagem, a mistura da celebração do nascimento de Cristo com o nacionalismo primário (uma contradição insanável) ou no protagonismo dado à bandeira que foi estabelecida e empunhada pelos mais ferozes anticlericais de 1910 na sua luta encarniçada contra a Igreja Católica. A labreguice da santimónia acentua-se com as cores e a falta de nexo nas figuras presentes: um Jesus Cristo adulto a adorar-se a si próprio em bebé, e uma estranha figura, um pastor com patas de ovelha. Atrás, encavalitam-se figuras angelicais e terrenas de olhos em alvo dirigido ao tecto. Esta estética não surge apenas por causa duma estratégia de comunicação fundada no escândalo, é porque as três cabeças pensadoras que decidem a acção do partido não controlam nada, criaram um monstro macrocéfalo.

Muitos países europeus, bastante mais desenvolvidos que nós, debatem-se nos dias de hoje com o aparecimento de novos partidos que vêm baralhar o sistema fragilizado, e que são fruto de democracias doentes, comunidades deslaçadas. Em Portugal, incapaz de atrair as verdadeiras elites para as causas públicas, com coragem e autoridade para reformar o país, vemos crescer este fenómeno de vulgaridade que é o Chega. A Pátria não se salva com murros na mesa nem tiros na nuca, desenvolve-se com diálogo e consensos que é o que caracteriza uma nação evoluída e próspera.

Luzes de Natal

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Não raro, até por parte de insuspeitos mas austeros cristãos, ouço protestos a respeito de eventuais excessos mundanos e ostensivos enfeites de Natal nas nossas casas ou ruas e cidades engalanadas com vistosas e resplandecentes luzes, como que a anunciar uma grande festa.

Mas nem sempre foi assim. Não há muito tempo, quando a escuridão nocturna dependia dos astros, o sustento dependia das colheitas, a saúde dependia da sorte, a distância dependia do andar, o comércio dependia das tréguas, a luz irradiada pelo Deus Menino em cada Natal era incontestável. Tento imaginar como nesses tempos remotos, quando o escuro da noite era difícil de aclarar, se engalanavam os templos para a Missa do Galo, alumiados de velas dispendiosas e aquecidos de famílias inteiras, gente de toda a condição. As igrejas engalanadas eram pólo de encontro dos cristãos, e o Natal tempo de consolo para os nossos antepassados, que numa trégua nos combates, trabalhos oficinais, agrícolas ou outras aflições, se juntavam a celebrar a vinda do Messias. Imagino os sombrios carreiros entre povoados, pontilhados pela luz das lanternas dos grupos de pessoas caminhando para se juntarem nas casas umas das outras. A festa fazia-se iluminada e aquecida por uma grande fogueira, com uma ceia melhorada com esmero e vinho bom.

Acredito que sob um céu estrelado e silencioso era então mais fácil a devoção à Natividade, o mistério da encarnação de Deus que do seio da Virgem Maria num recôndito estábulo vem comungar com a humanidade os seus padecimentos. Era por certo na altura mais evidente para cada um a importância da vida espiritual e da oração, fonte preciosa da esperança que move montanhas e conforta as angústias. Já as pessoas, na sua humanidade, eram intrinsecamente como nós, com as nossas dores, alegrias, angústias e esperanças.

Curioso como o improvável local do nascimento do menino Jesus foi revelado por uma estrela luminosa que guiou os sábios, reis e pastores para o Presépio. Foi com recurso a uma grande luz que se operou o mais bem-sucedido anúncio da história, que mudou o rumo da história. Mesmo que nos nossos dias a maior parte das pessoas não tenha verdadeiro interesse em conhecer o protagonista do Natal, certo será que a Natividade merece todo o espalhafato que uma incomensurável alegria naturalmente transborda e irradia, feita de cores vivas, brilhos e reflexos e… estrelas cadentes.

Natal é tempo de consolo, de tréguas, de nos juntarmos e nos fazermos presentes. Trocar sentimentos e palavras azedas por palavras benignas, o ruído por cânticos, a austeridade por festejos e luzes, são tudo coisas que estou certo farão sorrir o Menino Jesus nas palhinhas. Folguedos que, com o espírito certo, conferem nobreza à nossa dura existência. Era isso que Deus queria quando se fez carne e nasceu em Belém, com luz própria para nos ajudar a vencer as trevas.

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Sporting sempre!

Estou retido em casa adoentado com gripe. Com esta natural dificuldade de concentração prefiro mil vezes os canais ou rubricas de futebol que assistir à campanha generalizada pela manutenção do regime socialista. É o que impera nas televisões graças ao jornalismo de secretária mal pago e ao patrocínio da fidalguia estabelecida por tradição ou pureza de sangue. Sporting sempre!

Serena despedida?

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Estando desde Janeiro a acompanhar, a cada uma das 12 luas cheias, uma música nova daquele que viria a ser o primeiro disco de originais de Peter Gabriel desde 2002, terminada uma tournée de apresentação, eis que o conjunto é agora publicado fisicamente em forma de disco compacto e vinil. Aqui chegados, aguardava eu por parte da imprensa especializada as respectivas críticas nacionais e estrangeiras. Não poupando elogios, surpreendeu-me que pouco mais reflectissem do que aquilo que eu presumo ser o comunicado de imprensa fornecido pela editora do artista. Foi isso que me impeliu a dar-me ao trabalho de escrever algumas impressões pessoais sobre este disco que aguardava há mais de 20 anos. Vale-me o facto de não ser um crítico profissional, dando-me ao luxo de só escrever sobre aquilo que gosto e quando me dá na real gana. Não precisei de nenhum press kit, e o meu exemplar do disco (cujos temas foram sendo publicados nas plataformas de streaming) apenas me chegará às mãos como presente no sapatinho no dia de Natal. Como já tenho alguma idade, não só gosto do disco na forma física, como me habituei a ouvi-los respeitando a sequência dos temas, aspecto de grande importância para a impressão sobre a obra. Caprichos meus.

Não é segredo para ninguém, para os meus amigos ou para a meia-dúzia de pressoas que acompanha os meus escritos, que sou grande fã de música popular em geral e de Peter Gabriel em particular. Trata-se de um músico sofisticado e inconfundível vocalista que sigo desde os seus tempos dos Genesis, banda de Rock chamado “sinfónico” dos anos 70, que abordei aqui em tempos. Não foi certamente por causa do seu assumido sotaque inglês, aspecto pouco comum entre os músicos pop britânicos que se pretendam internacionalizar, que o artista me seduziu no início da adolescência quando o conheci no álbum duplo “The Lamb Lies Down on Broadway”. Publicado em 1975 este era um surpreendente disco conceptual (que conta uma história) em que Gabriel vestia a pele de um jovem marginal porto-riquenho perdido em Nova Iorque. O personagem, de seu nome Rael, (dizem que se trata dum anagrama de Gabriel), protagonizava uma enigmática aventura de autodescoberta apresentada em múltiplos quadros, uns inquietantes, outros bizarros e uns quantos encantadores. Foi com esse disco intenso com noventa minutos, que durante meses perscrutei minuciosamente na descoberta das melodias e tentativa inglória decifrar o ininteligível enredo integralmente escrito por Gabriel, que me descobri adolescente e me afeiçoei àquela voz rouca inconfundível. Meses mais tarde, no fim da tournée que passou por Cascais, Gabriel abandonaria os Genesis que fundara e de quem era o rosto mais carismático. Em 1977 iniciaria a aventura a solo de sucesso que conhecemos, um recomeço ousado para quem chegara a colocar em dúvida a carreira musical, farto que o jovem artista tinha ficado da intensidade e exigência do mundo do espectáculo. Arranjar uma nova banda e desfazer-se do legado Genesis que trazia agarrado à pele afigurava-se um enorme desafio.

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Peter Brian Gabriel nasceu em Chobham, a 15 km de Londres, em 1950, numa família de classe média. A sua mãe Edith Irene era violoncelista e o seu pai Ralph Gabriel engenheiro electrotécnico, acaso que explicará a conjugação do seu fascínio pela tecnologia com vocação musical. Com uma esmerada educação, frequentou a Charterhouse School, o colégio privado interno onde conheceu os outros fundadores dos Genesis, Tony Banks, Anthony Phillips, Mike Rutherford e Chris Stewart.  

Gostei muito dos seus primeiros 3 discos – todos sem nome: o primeiro pela novidade e por 3 ou 4 temas de antologia, sendo um deles “Solsbury Hill”; o segundo pela sonoridade e irreverência, puro Art Rock com reminiscências Punk, à maneira de “Back in New York City” o seu profundo grito de rebeldia genesiano em “The Lamb…” (a não perder a interpretação desta música por Jeff Buckley). Desse álbum são preciosas pérolas os temas hoje praticamente esquecidos como "Mother of Violence", "A Wonderful Day in a One-Way World", "White Shadow" "Indigo", "Exposure" (um festival de Robert Fripp), "Flotsam and Jetsam" e "Home Sweet Home", este último um cínico conto sobre um casal disfuncional sufocado num andar da impiedosa cidade de betão, rico em apontamentos de tragédia e sarcasmo. Ao mesmo tempo, em 1980, Peter Gabriel criava o projecto da sua vida, o WOMAD, um festival internacional de música e dança do mundo (World Music) que até hoje reúne anualmente artistas dos cinco continentes. Numa primeira fase, o projecto foi à falência, caso que ocasionou em 1982 a sua única reunião com os ex-parceiros dos Genesis, num grandioso espectáculo à chuva intitulado “Six of the Best” que ajudou Peter Gabriel a angariar fundos para pagar as dívidas e retomar o projecto.

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Passados cinquenta anos desses tempos juvenis e audazes, Peter Gabriel está de volta com um disco novo, que soa como um balanço e uma despedida. Serena despedida.  Longe vão os tempos dos seus álbuns de ousadas sonoridades experimentais, electrónicas e acústicas, na produção de arrojados concertos teatrais, visualmente vanguardistas, na senda do “espectáculo total”, que era o seu contestado propósito no tempo dos Genesis.

Gravado no seu grande e bem equipado Real World Studios situado em Bath, num ambiente bucólico (um equipamento residencial e tecnológico desenhado para gravações musicais e acolhimento de artistas) o novo álbum foi intitulado i/o (input/output). Acompanhado pelos seus músicos de sempre, Tony Levin, David Rhodes e Manu Katché e a assombrosa sonoridade electrónica de Brian Eno, Peter Gabriel parece-me em grande forma. Concordo com Marcos Richardson do Wall Street Journal, que considera a obra como “terna e optimista, um caloroso abraço de um dos praticantes mais meticulosos do art-rock.” O disco é composto por 12 temas que soam a uma serena despedida de quem sempre foi capaz de se elevar às alturas na procura de uma perspectiva desenganada do mundo e de si próprio, que atribua sentido à história, pessoal ou universal, um enquadramento da existência, o estranho privilégio de existir com consciência, num exigente sentido superior, estético, moral. Revelada de distintas formas, foi sempre esta inquietação que me atraiu em Peter Gabriel. Ele não é crente como eu procuro ser, mas quer crer. E essa procura nota-se em toda a sua carreira artística. Apaixonado pela natureza, assume-se no tema que dá nome ao disco i/o, assim como que panteísta, que somos todos parte de um todo, que desse modo as coisas ganham sentido “I’m just a part of everything, I’ll be laid to rest in a proper place, in the roots of an old oak tree, where life can move freely in and out of me.”

Mas é na belíssima faixa “Playing for time” que se adivinha mais explícito o tom de balanço e despedida deste seu sétimo álbum de originais “Oh, all the moments come and go, While the memories ebb and flow, And play again, play again, Oh, there’s a hill that we must climb, Climb through all the mists of time, It’s all in here what we’ve been through”. Depois comovemo-nos com “And Still”, com a sua homenagem à falecida mãe violoncelista de quem herdou o gosto pela música: “All gone away, All gone away, I place my head against your skin, As I did as a boy. And still your hands feel cold, Those hands that brushed my hair, I feel you everywhere, And I'll carry you inside of me, In every place that I will be.” O mesmo tom melancólico encontra-se em “So Much” sobre a finitude da existência enorme que cabe numa vida, sempre sem sombra de lamechice, antes uma soberba e despretensiosa canção.

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Mas é na última lua cheia, perdão, canção do disco, intitulada “Live and let live” que Gabriel nos deixa rendidos: “It takes courage, To learn to forgive, To be brave enough to listen, To live and let live, It takes courage, To start to forgive, To be brave enough to listen, To live and let live, let live”. Rendidos à única solução, à guerra e à violência, uma mensagem cristã que soa óbvia e autêntica: o perdão é difícil, mas é a única saída, a nossa única salvação. Pesado é o fardo da revolta.

A playlist completa deste disco já se encontra disponível nas plataformas de streaming, mas eu aguardarei serenamente pelo dia de Natal para desembrulhar e pôr a rodar este disco que foi muito aguardado. Requintadamente produzido em duas misturas, a versão “Bright-Side Mixes” e “Dark-Side Mixes” com uma bateria de vozes e instrumentistas convidados como o Soweto Gospel Choir, Orphei Drängar um coro masculino sueco e a New Blood Orchestra dirigida por John Metcalfe, este disco tem o que é preciso para usufruirmos longas horas de prazer musical, sensitivo. Peter Gabriel, pacificado, envelheceu bem e ofereceu-nos uma serena despedida.

Ou talvez não.