Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

João Távora

A idade das trevas

Trevas 1.jpg

Acho que já ando a falar disto sobre diversas formas há algum tempo: a dialéctica marxista a acicatar o fosso entre gerações, na diabolização do passado. Lembrei-me disso ao revisitar recentemente a série britânica “Endeavour”, uma esplêndida prequela de outra série televisiva, “Inspector Morse”,  baseada nos romances de Colin Dexter, produzida entre 1987 e 2000 pelos estúdios ITV que obteve grande sucesso. Em “Endeavour”, cuja primeira temporada foi produzida em 2012, recuamos aos anos sessenta do século XX para contar a juventude de Morse, melómano e homem tão complexo quanto culto, que larga o curso de literatura de Oxford para nessa cidade seguir a carreira de detective da polícia, sob a chefia do veterano inspector Thursday. Nesta série, de pendor intimista, protagonizada pelo enigmático e solitário inspector, revisitamos a cidade de Oxford, tanto no seu monumental esplendor quanto nos mais pobres e obscuros bairros da cidade, com as suas máfias e misérias humanas, em plena revolução de costumes. Um dos episódios decorre durante o Campeonato do Mundo de Futebol de 1966, em pleno auge dos Beatles. São dessa época as últimas execuções por pena de morte, assim como o espoletar da revolução sexual com tudo o que ela comportou, da normalização do divórcio à descriminalização das relações homossexuais. O que me salta à vista na narrativa adoptada é a forma como estes assuntos e fracturas são abordados em segundo plano em cada episódio, através duma impiedosa perspectiva maniqueísta sobre a sociedade daquela época, retratada como cruel e obscurantista… Apesar do Reino Unido ser usualmente considerado a mais antiga democracia do mundo. A ironia é que se trata afinal duma perspectiva tão deturpada como aquela que foi adoptada entre nós para se olhar a sociedade portuguesa e a História anterior ao 25 de Abril.

Resumindo, fica a impressão de que as forças progressistas que dominam o ambiente mediático, promovem uma narrativa que diaboliza o passado com obscuros propósitos - ou será simplesmente o mercado a funcionar? Tal acontece talvez para branqueamento dos dramas e apreensões causadas pelo presente, e pior, com vista à consolidação e manutenção das forças no poder, na defesa do inexorável caminho para os maravilhosos “amanhãs que cantam” mas nunca mais chegam. Ora, diabolizar o passado é tão disparatado como idealizá-lo, como se o antigamente tivesse sido a Era das inigualáveis virtudes e heróis.

O “antigamente” é uma entidade fácil de manipular para os mais duvidosos propósitos, na certeza de que o presente é demasiado concreto e complexo para nos iludirmos sobre ele. A diabolização do passado será sempre uma forma infantil de escapismo, de alienação. E não nos esqueçamos que daqui a algumas décadas não faltarão vindouros para nos julgar impiedosamente, aos nossos costumes e forma de vida.

Novo aeroporto em Alcochete

Gostei da decisão do governo, achei importante o consenso da maioria dos partidos e sintonia com o parecer da Comissão Técnica, e também gostei da decisão das obras urgentes na Portela. A notícia de que gostei mais foi da escolha do nome. Suspeito é que Luís Vaz de Camões daqui a 10 anos esteja cancelado pelo políticamente correcto como símbolo do heteropatriarcado branco, esclavagismo, e colonialismo.

Gente feliz com lágrimas

fbl-por-liga-sporting-31772132.jpeg

O futebol tapa muita coisa, dizia-me um dia destes um familiar muito assisado. Nada mais verdadeiro, mais ainda quando a política em Portugal por estes dias anda tão rasteira, cheira tão mal que tresanda de oportunismos e malandrices - que se lixe a Pátria.

Em boa hora, é neste panorama deprimente que o Sporting se sagra campeão nacional. Uma estonteante alegria infantil que venho saboreando, aficionado que sou do futebol, sportinguista de corpo e alma, uma pertença que recebi de família, que ao longo da vida nem sempre foi leve. Talvez por isso nestas alturas usufrua o acontecimento com desmesurado e intenso prazer. Até um crónico derrotado como eu, sempre do lado minoritário da barricada, merece o sabor goloso duma vitória destas, mesmo no lado lúdico da vida -  é o que levamos daqui.

Um aspecto particularmente fascinante, mesmo que não seja exclusivo do futebol, mas que me agrada de sobremaneira, é a vertente colectiva desta apaixonante modalidade: uma equipa liderada com o espírito certo, atinge resultados muito superiores à soma dos seus elementos. O espírito de grupo, a solidariedade e complementaridade entre os elementos, cada um fundamental para a dinâmica e motivação em vista. Repare-se como a retirada de um elemento num determinado confronto, se  momentaneamente fragiliza a prestação, o restante grupo, se coeso e bem liderado, supera-se em solidariedade e empenho. Se alguém cai, logo outro o levanta ou substitui na função. É isso que de mais belo a humanidade consegue ser. Fazer. 

Assim aconteceu com o meu Sporting esta temporada, com exibições de encher o olho, entusiasmantes de alegria e nota artística. Um sinal de que o fado não é uma fatalidade. E que, pelo menos na bola, os meus por uma vez dão a volta ao texto, dão a volta à História, viram o jogo e ocupam o lado de cima, sobem ao céu. Contra ninguém.

Os Sportinguistas têm a oportunidade de, de uma vez por todas, adoptar o discurso pouco trágico dos vencedores, um sítio gostoso de olhar o Mundo e expulsar o estigma da modéstia e da derrota, da vitória moral, do caminho de morte, sintoma de fim. De deixarmos de justificar as derrotas com as nossas virtudes morais, uma narrativa enganosa, do receio da felicidade, da luz do sol encadeante, que ilumina o gosto pelo sucesso, a recompensa pelo esforço.

O futebol tapa muita coisa mas também desvenda muita coisa. O sucesso é uma coisa boa, aliada à virtude, à luminosidade, à verdade. A vitória do Sporting neste campeonato, jogado às claras, sem equívocos ou batotas, com público nas bancadas e com competições europeias é um verdadeiro consolo. Uma vitória que, propositadamente não atribuo a nenhum protagonista especial, porque é uma vitória de grupo, de equipa, de conjunto, de uma cultura, de uma comunidade. Em que todos os protagonistas, do adepto ao roupeiro, da bancada ao camarote ou à equipa técnica, do guarda-redes ao ponta de lança, todos foram fundamentais. Talvez a fechar uma página da nossa história, um fado de gerações.

Viram bem as faces felizes, os sorrisos francos, as lágrimas de felicidade, que correram por esse Portugal inteiro, a desaguar na rotunda no Domingo? E se Portugal todo se pudesse inspirar neste fenómeno?

Publicado originalmente aqui

"E, afora este mudar-se cada dia, Outra mudança faz de mor espanto: Que não se muda já como soía" *

Lusa.jpg

Quando no feriado do 1º de Maio à tarde atravessei a pé a Alameda D. Afonso Henriques, em pleno encontro do “povo trabalhador”, deu para constatar que a média de idades dos participantes, longe das grandes multidões dos anos 70 e 80, não andará distante dos sessenta anos. Ou seja, a grande maioria daqueles com que me cruzei, são os mesmos que andam nessa vida, de manifs, greves e reivindicações, há cerca de cinquenta anos - curiosamente exibindo o mesmo trajar e estética capilar. Se por um lado me apraz a constatação de que esse fenómeno revolucionário nascido da militância sindical do pós 25 A se encontra em vias de extinção, como um fenómeno geracional que foi, a expressão do novo esquerdismo progressista que vai tomando forma, aquilo a que se vai definindo (de forma grosseira) como “movimento Woke” com as suas diferentes mecânicas e formas de expressão, não me deixa nada descansado. Não tenho nada a certeza de que o sistema liberal representativo em que vivemos no ocidente em geral, cada vez mais polarizado e socialmente atomizado, consiga absorver e integrar estes movimentos minoritários de ruptura, que em tempos, em Portugal, eram “domesticados” pela esquerda institucionalista e os seus sindicatos satélites. Pelas discussões e fracturas que vão tomando lugar no espaço público receio vir a ter saudades deles…

* "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades" Luís Vaz de Camões

Fotografia Miguel A. Lopes - Lusa