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João Távora

Adeus, querido mês de Agosto

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A saudosa Helena Vaz da Silva disse certa vez, quando alguém lhe perguntava qual a época do ano sua preferida, que gostava sempre daquela que estava a viver – por regra em alta intensidade. Sou capaz de aderir a essa ideia, reconheço que todas as estações e meses, com as suas nuances, têm o seu especial encanto, que depende principalmente do nosso olhar. No entanto, certamente por razões pouco originais, tenho uma especial simpatia pelo mês de Agosto.

Em primeiro lugar, porque tenho a sorte de ter nascido no dia de Nossa Senhora da Assunção, a quem todos os anos dou graças pela intercessão e pelo feriado que me permite a reunião com os bons amigos que a ela aderem, estando de chegada, de partida ou em trânsito para os seus destinos estivais. A Assunção de Nossa Senhora é uma das mais importantes devoções que, em quase todas as cidades vilas e aldeias por esse Portugal afora, o povo ainda celebra com festas e romarias. Este festejo é assim como que um antípoda do Natal, também de encontro entre as pessoas – “Entre a Conceição e a Assunção está toda a História da Salvação”.

Diz o povo que Agosto é mês de desgosto. Acho que tenho tido sorte. Gosto do mês de Agosto mesmo tendo de trabalhar, a meio gás é certo, com “um olho no burro e outro no cigano”. O ambiente à minha volta faz-me sentir como um veraneante. Apraz-me a cidade menos ansiosa, os supermercados, ruas e transportes vazios, lugares para estacionar o carro. Gosto de usufruir da lassidão dum final de tarde conquistado na praia, da ilusão de liberdade acrescida. Gosto daquela semana na quinta, das praias do Oeste, da mesa de jantar cheia de sobrinhos e da massada de peixe quase à meia-noite, servida depois dos intermináveis duches desorganizados. Gosto quando os miúdos partem para os seus programas e estadias, da casa vazia e das noites tropicais na varanda onde envelhecemos os dois. Gosto do silêncio que ressoa nas ruas semiabandonadas, dos jantares de amigos aqui e ali, da roupa leve e da pele radiante da praia, os livros finalmente lidos sem muitas interrupções… a gozar o ócio, qual direito decididamente inalienável.

Estas são razões para que, aqui chegado à véspera de Setembro, sinta uma certa nostalgia e indolência, preguiça de enfrentar as rotinas e trabalhos que se agigantam no horizonte, o recomeço dum novo ciclo de tarefas e trabalhos sempre exigentes.

O que me vale é que também gosto disso.

Uma boa história

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Na minha opinião há opiniões a mais. Toda a gente sabe como a sacrossanta “opinião pessoal”, um direito há muito democratizado, por estes dias saiu dos salões, cafés e barbearias, para se banalizar nas redes sociais como arma de arremesso ou troféu de originalidade. O problema é quando é usada como uma bomba capaz de silenciar o mais salutar convívio, azedar relações familiares ou laborais, ou bloquear promissoras amizades virtuais. Já falei deste assunto aqui há tempos, tendo então defendido que o fenómeno actualmente exige cuidados redobrados: definitivamente uma contundente opinião expelida à mesa dum jantar de família ou entre colegas de trabalho não funciona como no Twitter, onde só por grande coincidência se encontrará algum dos seus fiéis e entusiásticos seguidores.

Se cada pessoa lesse um livro antes de emitir uma opinião ainda se aceitava. Mas não. O fenómeno é tanto mais fracturante quanto um autêntico catálogo de aprimoradas e perigosas opiniões, sobre tudo e sobre nada e com as mais inéditas matizes, é-nos generosamente disponibilizado em abundância pelos mais credíveis especialistas, políticos ou jornalistas, todos os dias e a todas as horas nos jornais, rádios e televisões – uma oferta que excede em muito a procura. Democraticamente, hoje, todos podemos chegar ao café com uma ou mais opiniões emprestadas e fazer um brilharete. De realçar que, se todos temos direito a expressar a nossa opinião, a tolerância ainda não é um dever de cidadania, que isto das opiniões, há cada uma…

Tudo isto para dizer, que nos encontros de amigos, familiares e colegas, não fazem falta opiniões, mas antes boas histórias. O que promove e prolonga uma boa conversa são boas histórias, bons contadores de histórias. Uma boa história, ao contrário duma opinião, convida, promove, bons ouvintes, algo essencial num bom convívio. Uma mesa ou um salão civilizado requer igual quantidade de bons ouvintes quanto de bons contadores de histórias. Uma boa história gera curiosidade e interesse por parte dos convivas. E numa boa história estão sempre implícitas opiniões, uma determinada estética, uma concepção do mundo, da existência que exprimida desta forma não causará grandes antipatias.

Todos temos o direito de rejeitar uma opinião: por total desacordo de princípios, por simples impaciência ou embirração com o interlocutor. Repitam todos comigo, por favor: só se devem dar opiniões a quem as pede – já dizia a sabedoria popular. Quem me vem ler aqui sabe ao que vem, é porque quer, e gabo-lhe a paciência por isso. Mas não restem dúvidas de que escutar uma boa história, uma peripécia, testemunhada ou experimentada, é o melhor que levamos duma confraternização num jantar de férias em Agosto. A boa conversa, uma arte preciosa que é necessário cultivar, é tão ou mais marcante que um sofisticado vinho ou as deliciosas iguarias que nos juntam a uma mesa.

Esta crónica é uma homenagem aos bons contadores de histórias, bons conversadores com quem tive a sorte de me cruzar. Boa gente cada vez mais rara, que no lugar de opiniões, partilha memórias e experiências fantásticas, simplesmente cativantes, ou somente bem contadas, amigos que temos de acarinhar para que não desapareçam de vez, oprimidos pela voragem das opiniões pessoais vertidas por temerários prosélitos. A esses, peço só que me contem boas histórias e guardem as suas opiniões.

Publicado originalmente aqui

Carros eléctricos

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Os chamados “Americanos” eram carruagens de tracção animal para transporte público colectivo que começaram a circular em Lisboa sobre carris, tendo os primeiros sido instalados num trajecto, entre Santa Apolónia e Santos o Velho, inaugurado em Novembro de 1873.  

Foi no dia 31 de Agosto de 1901 que saiu do Cais do Sodré utilizando a mesma estrutura de carris, o primeiro carro movido a electricidade com destino a Algés. As obras de electrificação das vias, tendo decorrido ao longo do ano de 1900 causaram grande polémica nos salões, cafés e imprensa da época. Anteviam-se grandes desastres e electrocuções na via pública, já para não falar do protesto que gerava a proliferação de uma teia infindável de cabos eléctricos aéreos que poluíam a paisagem. O povo habituou-se à paisagem e em 1907 a Carris contava já com 240 carruagens que, de forma económica e alucinantemente rápida, interligavam toda a cidade. Com o advento do motor de explosão, o automóvel, vir-se-iam definitivamente a extinguir os mal-cheirosos detritos animais que por décadas se espalhavam por toda cidade. Foi uma profunda revolução nos hábitos e costumes da cidade.

Pela minha parte, confesso que caso tivesse onde o guardar e recarregar, gostava muito de ter um Tesla ou veículo similar.

Reflexões em tempo estival

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O mês de Agosto é o tempo ideal para que na Comunicação Social e os veraneantes à roda da mesa de café discutam o premente problema do “idadismo” dentro das empresas, ou seja, o preconceito e as consequentes manigâncias e malfeitorias de que os mais velhos são capazes de perpetrar contra os jovens, vítimas de discriminação em função da idade,  impedidos duma salutar progressão na carreira. Segundo a investigadora da FFMS Susana Schmitz, “o idadismo pode constituir um obstáculo à retenção de talento, levar a que os trabalhadores mais jovens não se sintam valorizados” que alerta para a necessidade das empresas criarem mecanismos para quebrar estereótipos, tão funestos quanto o racismo ou o sexismo. Ouvi esta manhã na Rádio Observador, palavra d’ honra...

Assim como assim, neste mês de batizados nas aldeias eu prefiro trazer à colação deste blog a decadência sinalizada pela multiplicação de nomes próprios absolutamente inéditos como Bekoloya, Karen, Priscilla, Jéssica, Ticiane, Vivienne, Heltrício, Kévim, Jovânio, Kellys, Suellen, Aarica, Abimaela, Basiru, Daizara, Elisângela, Silivondela, Deocliciano, uma criatividade capaz de pasmar o mais experimentado padre ou notário. Por mim, evito adjectivar tanta imaginação. A minha teoria, partilhada à mesa do café em gozo de férias, é a de que os abençoados progenitores dessas crianças, intuindo a raridade estatística que é por estes dias trazer uma nova vida ao mundo, o afirmam pela originalidade do nome. Talvez se pretenda deste modo declarar os filhos como únicos, tesouros absolutamente singulares como se fossem de geração espontânea. Ou um fenómeno do hiperindividualismo a que a História no Ocidente hedonista nos conduziu e produz.

Quanto à originalidade de cada criatura, oriundo duma família cristã, cedo compreendi como cada um acontece único na história, que “até os fios de cabelo da vossa cabeça estão todos contados. Não temais!“ (Lucas 12 – 7), mas que, sendo filhos únicos de Deus só nos realizamos em face dos outros e da história comum que nos cabe fazer parte e construir com os dons de cada um. Somos todos herdeiros e deixamos legado. Talvez por isso os meus nomes próprios tenham sido várias vezes repetidos por várias gerações atrás.

Curiosamente, na minha ascendência tanto materna quanto paterna, as criancinhas eram baptizadas com nomes herdados dos avós ou dos padrinhos, sinalizando a continuidade do sangue, como se quisessem atribuir a cada novo Ser um lugar numa corrente construtora de uma história feita de pertenças e dependências. Como antigamente se tinham muitos filhos, havia sempre lugar a alguma improvisação nos nomes dum ou doutro, mas quase sempre em homenagem a um determinado santo, ou personagem histórica, quase sempre bíblica, que fosse inspiradora de heroicidade e erudição. Nessas famílias seguiam-se regras bastante claras de atribuição do nome ao primogénito em que se incluía o nome da devoção familiar e dos seus santos patronos. Por exemplo, no caso da família da minha mãe, o nome do filho mais velho, em seis gerações, variou exclusiva e intercaladamente entre José Joaquim e João António, facto que reflecte uma circular geometria harmónica, que subsiste até aos dias de hoje, com o significado da continuidade de uma história cujo simbolismo ultrapassa a contingência do individuo circunstancial no tempo.

Se os novos e estrambólicos nomes próprios forem apenas isso, inéditos, espera-se que deixem pegadas de memória. Só aprendemos a construir o futuro com memória, dos erros e sucessos. É disso que é feita uma Família, uma Comunidade, uma Nação. Daí que espera-se que cada nome conte uma história e que conte para a História.

Na fotografia: o meu filho e sobrinhos em férias numa terriola do interior de Portugal. Todos vamos para velhos... 

Migrantes

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A esquerda precisa da permanente reposição de níveis de miséria e insegurança na cidade para acalentar o sonho da revolução. Já a direita não dispensa os migrantes pois não têm melhor bode expiatório para justificar a sua impotência perante o deslaçar da comunidade pelo extremo individualismo. O centro, empurra os problemas, na verdade irresolúveis, com a barriga. Certo é que o caminho da decadência no Ocidente parece inexorável.

Uma questão binária

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Confesso que, na minha ignorância (muitas vezes desviamos os olhos daquilo que não gostamos) pensava que o Boxe era um desporto intrinsecamente ligado à estupidez masculina. Claro que pensando melhor, concluo que a alarvidade, como o bom senso, é a coisa mais bem distribuída do mundo e não escolhe sexo, nação ou raça. E assim chegamos à descoberta de um combate de Boxe Olímpico (que tem a vantagem estética dos capacetes na cabeça dos praticantes) feminino de -66kg, entre a italiana Angela Carini e a argelina Imane Khelif. Ora acontece que a atleta da Argélia, é um caso raro de hermafroditismo a que agora chamam “intersexo”. O facto é que a Senhora (salvo seja) Khelif, que tinha sido impedida de participar no Mundial da modalidade do ano passado, por falhar os “critérios de elegibilidade” nos testes, que revelaram níveis de testosterona não permitidos pelos regulamentos da Associação Internacional de Boxe, espetou dois peros que despacharam a italiana aos 46 segundos de combate.  Ora, por alguma razão as competições desportivas são segregadas pela biologia dos atletas. Se assim não fosse, as mulheres ficariam a perder na maioria das modalidades (acho que no hipismo concorrem com o sexo masculino sem prejuízo da justiça desportiva).

Dando de barato que Khelif não seja um homem apesar de ter os cromossomas XY, parece claro tratar-se de um raro caso de DSD (Disorder of Sexual Development), que ocorre em 1/20.000-25.000 nados-vivos. Certo é que o Comité Olímpico deveria ter médicos e biólogos na génese das regras dos JO, para que se evitem estas injustiças, ou até algum acidente de consequências mais graves. Impõe-se o respeito pelas diferenças.

Como vimos, a esteticamente vergonhosa cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos celebrou, além da desconstrução da história e dos valores fundacionais cristãos, por meio do protagonismo dado a drag queens e quejandos, a “fluidez” de género. Como se verifica neste caso é um caminho perigoso para a sustentação da competição desportiva, que terá de se cingir, privilegiar e respeitar a biologia dos participantes. O mesmo se exige à medicina, e já agora, na semântica.

Se este caso de olímpica iniquidade teve alguma virtude foi a de revelar para os mais desatentos a importância da biologia na questão de género. Talvez por isso seja de estranhar (ou talvez não) a ausência deste tema nos espaços de comentariado da Comunicação Social convencional. 

A ver como decorrerão os próximos combates de Imane Khelif.