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João Távora

A ilusão do "nosso tempo"

Mosteiro dos Jerónimos, ruínas causadas pelo desmoronamento da torre central.jpg

Naquele tempo, comentavam alguns que o Templo estava ornado com belas pedras e piedosas ofertas. Jesus disse-lhes: «Dias virão em que, de tudo o que estais a ver, não ficará pedra sobre pedra: tudo será destruído». Lucas 21, 5

Agarramo-nos à iconografia do nosso tempo como se fetiches se tratassem. Pretendemos que o nosso tempo se deixe tomar para nós, como se fossemos suficientemente importantes. Chega a ser comovente como nos empenhamos a preservar as obras que nos foram significativas, livros, discos, filmes, pinturas. Restauramos os templos e os palácios, quantas vezes adulterados da sua essência, para se parecerem com o que queremos, para nos justificarmos para lá da nossa época. Somos todos assim: é por isso que os avós contam histórias aos netos, a filha guarda o anel que foi da mãe, e alguns até escrevem memórias… para amparar as paredes do Templo, ameaçado pela ruína, pelo fim.

“Aqueles que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando” escreveu Camões a abrir os Lusíadas, o próprio a esculpir em pedra os feitos ímpares dos heróis portugueses, o próprio na obra que o viria a eternizar. Ou talvez não. O que é que fica no mundo gravado para sempre se o próprio planeta e universo são finitos?

Mas, descendo um pouco à terra, ao concreto, quantos dos nossos heróis resistirão na memória comum, depois da partida dos seus contemporâneos? Quantos dos nossos ídolos, no desporto, na literatura, na música e nos espetáculos em geral serão lembrados daqui a cem anos? Curioso como a maioria dos actores e actrizes, cantores e cantoras, escritores e cronistas, de grande sucesso no século XIX foram completamente esquecidos pela voragem do tempo e das novas modas?

E quisemos tanto preservar esses nossos heróis, partilhá-los entre amigos, para legitimar paixões vãs, ou até espúrias... Há uns tempos convidei a minha filha a ver comigo um filme que marcou bastante a minha geração, o Amarcord dirigido pelo cineasta italiano Federico Fellini em 1973. Dotada de sentido critico e interessada nas coisas das artes, certo é que ao fim de meia hora disfarçava mal a impaciência. Tentei então ver o filme pelos olhos dela, e apercebi-me da vulgaridade daquele guião, que sem o contexto que se vivia naquela década desconchavada, soava tão mal na inocência da miúda. Não viu o filme até ao fim e compreendi lindamente. O mesmo acontece com a maioria das centenas de discos e livros que guardo com esmero, cuja “validade” vai caducando aos olhos das novas impiedosas tendências. Talvez por isso há muito que deixei de comprar livros ou música nova, que acompanho com prudente equidistância. Quanto aos livros poupo o tempo para os clássicos e nos discos, além das paixões de juventude, cultivo os esquecidos cantores de vaudeville americanos e anónimos actores e fadistas gravados no princípio do séc. XX em goma-laca ou cera num fonógrafo. Perdido por um, perdido por mil…

Se é certo que nenhuma destas traquitanas, a que nos apegamos, a longo prazo terá qualquer valor, se é certo que aqui estamos de passagem, é indiscutível que na nossa alma nos advém a pulsão de construir, de preservar, de alcançar a eternidade.

De onde nos virá este impulso?

Na imagem: Mosteiro dos Jerónimos, ruínas causadas pelo desmoronamento do corpo central em1878

Deus nos acuda

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Preocupa-me o progressivo desaparecimento das referências cristãs no Natal pelas nossas paragens. Afonso Costa, cúmplice no assassinato do rei, exulta na sua campa, ou suspeito que não, porque não é possível alegria a quem arde no fogo eterno da Geena. Mas a minha preocupação não é tanto a questão da envangelização, mas a da viabilidade a longo prazo deste condomínio em que se vai transformando Portugal. Uma nação, requer uma alma, sabiam?

A pouco mais de um mês da grande festa do nascimento de Jesus Cristo, inspiração fundacional da nossa Pátria e do nosso continente, o que se vislumbra no espaço publico aqui e no resto da Europa, na comunicação social, nas montras e nas nossas ruas, é o império de uma simbologia pagã, o simples, mas irresistível apelo ao consumo e ao prazer niilista. A ausência da iconografia cristã no espaço público salta-nos aos olhos, grita-nos aos ouvidos. Daqui a pouco tempo ninguém reparará.

A diluição, a fraqueza da simbologia e referências que deveriam ser o denominador comum de um povo constitui um factor de decadência. Defendem os materialistas que a lei é o que basta para garantir esse chão comum, mas eu duvido. O que nos garante os mínimos de urbanidade, o cimento que liga as vizinhanças, as freguesias, as cidades, constituídas á volta de uma língua e de uma história? O que estamos a fazer á nossa língua e à nossa História? E o problema não são os imigrantes, somos nós próprios, que, entretidos nos pequenos interesses imediatos desistimos de um sonho comum. Os imigrantes, perante o vazio que encontram no lugar dos nossos símbolos, cuidarão de o povoar com as suas narrativas inspiradoras, na luta por uma vida com sentido.

Talvez eu esteja enganado, mas suspeito que o iluminismo racionalista concebeu a mecânica para uma monstruosidade inviável a médio prazo. Prescindimos da espiritualidade que sustenta a empatia e confiança entre os vizinhos. Encerrados em quartos, isolados e desconfiados, o condomínio não inspira ninguém a enfrentar ameaças ou aceitar riscos. Isolados e estéreis, satisfazemo-nos com o Marcelo e a Selecção, para levantarmos o sobrolho no intervalo do entretenimento.

Na imagem: "O Milagre de Ourique" por Domingos Sequeira (1793)

A minha década é mais prodigiosa que a tua

It’s Only Rock ’n’ Roll (but I Like It)

Pedro Boucherie Mendes apresenta no seu livro A Década Prodigiosa, publicado pela D. Quixote, um trabalho admirável para recordar o Portugal na década de oitenta. Apesar das cerca de 640 páginas, trata-se claramente de um livro Pop, interessante e divertido, dedicado à geração do autor, nascida no início dos anos 70, um manancial de potenciais leitores: “em 1981, um quarto da população tinha quinze anos ou menos, eram quarenta e quatro idosos por cada cem jovens. Não se desconfiava que em 2021 seriam cento e oitenta e dois velhos por cada cem.” Acontece ao chegar à meia-idade cedermos legitimamente à nostalgia e daqui se depreende o potencial sucesso comercial da obra. De resto, convém ressalvar que este texto não é uma recensão, antes um pretexto para eu contribuir com os meus cinquenta cêntimos sobre o período histórico em causa.

Originário duma família tradicional e conservadora, a cultura Pop é também a minha praia: nascido e criado rodeado de livros, banda desenhada e discos de vinil a rodos, jornais, revistas, televisão, cinema americano e cromos da bola, deliciei-me a recordar a década de oitenta, tempo dos meus destravados vinte anos. Mas a minha década prodigiosa terá sido outra, luminosa e colorida como a bonecada da Linha Clara da escola Franco-Belga. Talvez porque cada geração tende a idealizar a sua infância ou pré-adolescência, quando a realidade nos parece estar estacionada num ponto definitivo, cristalizada. O autor nasceu em 1971, e entende-se o fascínio com que observa e compila as memórias da década seguinte, que também me seduziu a mim, então dez anos mais velho. Mas não será atrevido isolar uma década do resto da cadeia temporal, tomá-la com um perfil e carácter próprio, influenciado por uns quantos acontecimentos e desenvolvimentos tecnológicos marcantes? Serão os anos 40 marcados pela II guerra Mundial, e qual a sua iconografia? Como se destacam os anos 50, quais os símbolos e eventos que marcaram a geração que nos antecede? Os anos sessenta em que nasci inevitavelmente remetem-nos para a cultua hippie, e a afirmação da adolescência como preponderante protagonista da vida pública, política e cultural? Não será a tendência “barroca” e a estética depressiva da música Pop dos anos setenta uma reacção aos excessos juvenis da década anterior? Como se integra a vida política e cultural portuguesa, sempre relativamente atrasada em relação às tendências do restante mundo ocidental, pelos clichés com que nos habituámos a interpretar o Mundo?

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O que é facto é que em 1967, ao tempo de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, José Cid produzia com o Quarteto 1111 o EP A Lenda De El-Rei D. Sebastião, e onze anos mais tarde o “nosso Elton John” lançava 10.000 Anos Depois entre Vénus e Marte, um LP conceptual, que fugia à preponderância da canção revolucionária nos anos setenta. Deste lado do planeta o mundo já era cada vez mais pequeno, progressivamente convertido à hegemonia da cultura anglo-saxónica. Como bem refere Boucherie no seu A Década Prodigiosa, o caminho para a normalização da democracia em Portugal iniciara-se com a improvável maioria absoluta da AD em 1979, justamente um ano antes de No Jardim da Celeste da Banda do Casaco, outro marco importante da Pop nacional na sua libertação das grilhetas revolucionárias, então a perder gás.

Se por um lado sou levado a concordar com a peculiaridade dos anos oitenta em Portugal, o próprio autor por diversas vezes mergulha na década de 70 identificando em grande medida os mesmos traços da seguinte: a supremacia da televisão em casa, ainda que a preto e branco, ponto de confluência das famílias, especialmente das crianças, e a rua como extensão do seu espaço lúdico, onde elas, como “bandos de pardais à solta”, pontuavam a paisagem do bairro ou da cidade, aos molhos a ir ou a vir da escola com a mochila às costas, a jogar à bola com balizas improvisadas ou a recriar com tiros e correrias o episódio do Bonanza que todos tinham visto depois do almoço no único canal de televisão, ou a trocarem os cromos repetidos do Yazalde ou do Jordão.

Não terá dado por isso Boucherie Mendes, mas os anos 70 comportam na cultura Pop emergente em Portugal uma subtil revolução quase tão importante quanto a dos cravos: a popularização da rádio FM, propagadora, com uma diferenciada qualidade sonora, da música anglo-saxónica, mais ou menos alternativa, mais ou menos sofisticada, que vinha sendo importada do mundo “civilizado”.  Consolidava-se então a hegemonização do inglês como segunda língua, nos media, nas ruas e nos currículos das escolas, que significava o progressivo desaparecimento da francofonia dos nossos pais (os meus pais falavam francês), e com grande tristeza minha, o apagamento da canção francesa da “banda sonora” das novas gerações.

A década de oitenta foi de facto o tempo da consolidação da democracia liberal no nosso país, empurrado por um crescimento económico alavancado pela integração Europeia, pelo consequente dinamismo da iniciativa privada em todos os campos da economia, pela estabilidade governativa que se ensaiava, para a chegada dos governos reformistas de Cavaco Silva. Como resultado, deu-se uma insólita desmultiplicação da oferta cultural, onde a hegemonia da ruidosa esquerda ia abrindo brechas, perante a indomável vontade duma burguesia crescente, rendida aos encantos do consumo e da felicidade que prometia: “os anos 80 foram uma viagem, uma quase peregrinação, com peripécias e momentos, pintada a optimismo que se alimentava porque sabíamos que chegaríamos a um local feliz”. Dando de barato o exagero da generalização, numa visão panorâmica, a observação talvez não esteja muito longe da verdade.

Não sendo o livro uma história cronologicamente relatada, antes o entrelaçar de muitas histórias em diferentes tempos, memórias autonomamente contadas, com sistemática referência às manchetes, à iconografia e aos mediatizados protagonistas da época, a edição merecia um índice remissivo muito mais detalhado, para dessa forma permitir mais facilmente ao leitor saltar de tema ou personagem… Não sendo propriamente um defeito, o livro denota a preponderância talvez exagerada da televisão que, nos anos oitenta com a chegada da cor e novas propostas de programação, das novelas, concursos e programas de entretenimento, na narrativa da obra. A isso não será alheio, não só o facto de Pedro Boucherie Mendes ser um profissional da televisão, como a idade em que viveu essa época. Para quem como eu chegara à maioridade em 1980, a televisão foi durante essa década um plano B, com lugar secundário no quotidiano dum jovem irreverente q.b., assediado por outro tipo de passatempos, digamos, menos virtuais. Por outro lado, tenho ideia de que a minha geração, nessa década, mais que ligada à televisão, estava apegada às rádios FM onde se podia escutar e, com sorte, gravar para uma cassete, LPs inteiros difíceis de obter em Portugal, ou ouvir outros programas, como o Café Concerto da quase esquecida Maria José Mauperim…

A propósito de esquecimentos, A Década Prodigiosa é uma obra memorialista escrita na primeira pessoa, entrelaçando subjectividades sentimentais com dados objectivos, estatísticos e históricos, e principalmente uma profusão de referências a toda a sorte de iconografia da época, de Júlio Isidro ao Tulicreme, de Saramago aos Scorpions, de Ana Salazar a Miguel Esteves Cardoso, de Fernando Pessa à Pepsodent, dos Porfírios ao incêndio no Chiado, da Olá Semanário às anedotas de pretos, da Maria Armanda “Eu Vi um Sapo”, ao “Stor” e “Stora”, do Rock Rendez-vous à banda Roquivários, Vila Faia ou o Casal Ventoso, as lojas Cenoura ou o golo de Carlos Manuel e Saltilho, Carlos Cruz e o 1,2,3, às Doce, enfim; que curiosidade provocará toda esta informação nas gerações vindouras? O que, destas tantas pequenas histórias que ilustraram as nossas vidas, sobreviverá às brumas do esquecimento? Não explicarão elas os contextos que proporcionaram as grandes histórias que construíram o que nos espera no futuro? Ou será A Década Prodigiosa apenas Rock n’ Roll para usufruir com gozo?

Publicado no Observador