Uma questão de Fé
Às vezes, com os inclementes apertos da vida, até o mais esclarecido crente, cede perante a fraqueza e reza pedindo a Deus que intervenha a seu favor. Como se o seu interlocutor fosse um maquiavélico arquitecto do destino de cada um, calculista ou indiferente à interferência que cada fenómeno terá nos infindáveis destinos que interagem na Criação, que cada criatura integra. Sou incapaz de julgar com severidade esta atitude, porventura ingénua, inocente, a que se usa chamar uma relação de cariz mercantilista com o Criador. O risco desse perfil de relação, com as situações pessoais mais trágicas, é a revolta e a zanga, perante o silêncio tornado ausência de Deus. Por isso somos convidados a confiar, a atender com humildade à passagem do Pai Nosso “Seja feita a Vossa Vontade”, a entrega incondicional da soberania da nossa vida ao Pai. Ou, no mesmo sentido, à resposta de Nossa Senhora ao Anjo Gabriel ‘Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,26-38).
Mesmo que muitas vezes isso vá contra os meus “interesses”, tidos como designação da “ordem” que eu gostava de ver à minha volta, no meu país e no mundo, tenho para mim que o Deus dos Cristãos é um Deus de Liberdade; ou seja não intervencionista. Mesmo que essa “abstenção” se confunda, nos momentos mais sombrios da existência, com ausência. A Liberdade que Jesus Cristo nos concedeu, únicos e irrepetíveis, desde logo em aderir ao seu Amor, de escolher o bem ou o mal, certamente estende-se a toda a criação, ao Universo. Uma coisa difícil de conceber, se atendermos às guerras ou desastres naturais e tantas trágicas injustiças, a que, por mais devotos que sejamos, nos constatamos impotentes para evitar.
Apesar de tudo isto, ou talvez também por isso, a oração, o diálogo com Deus, é absolutamente estruturante a quem pretenda permanecer crente na sua filiação. Em primeiro lugar, porque rezar é relação. Como no amor romântico ou filial, como numa amizade que se preze, a relação tem de ser alimentada, aprofundada, cultivada. Rezar é para isso fundamental. Interpelar Jesus Cristo, Deus nosso Senhor, na partilha das alegrias com que somos agraciados ou nas angústias que nos assaltam, é fazer relação, tirar a cabeça para fora da gruta de sombras e alienações que a nossa precaridade humana nos condiciona. Até o acto mecânico de rezar, continua e repetidamente, como acontece tantas vezes com um Terço oferecido a Nossa Senhora, ao final de um dia extenuante de trabalho, oferece-nos o benefício gratuito de libertação e relaxe das ansiedades e do fechamento.
Gosto muito da designação "Criador". Os Cristãos entendem que a relação do Criador com a Criatura é de Amor. A liberdade que outorga à Criação é também ela prova disso. Imagine-se que era ao contrário, que éramos condicionados, como marionetas, nos nossos gestos e atitudes, em prol de um quadro idílico… E depois, os crentes, assim como acreditam no poder da oração, acreditam que, sendo extremamente raros, os milagres, acontecimentos extraordinários que, incompreensíveis à luz dos sentidos, da inteligência e do conhecimento científico, acontecem.
Afinal a esperança acontece.