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João Távora

O rádio portátil

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O apagão de ontem relevou-nos a importância da radiodifusão, das velhinhas ondas hertzianas cuja emissão convém manter por mais inútil que pareça – julgo que já só a Antena Um transmite em Ondas Médias (em minha casa não consigo captar) que tem vantagens funcionais em relação às Frequências Modeladas em caso de emergência. Aquilo que parecia inconcebível aconteceu: depois do almoço, ficámos progressivamente todos desligados. Primeiro desligados da rede telefónica fixa, depois da rede celular de telemóvel e finalmente da internet (móvel e fixa). A jornada serviu principalmente para percebermos as fragilidades que o nosso modo de vida excessivamente dependente da tecnologia encerra. De demasiadas tecnologias.

Da experiência urge tirarem-se profilácticas ilacções sobre as causas e responsabilidades pelo do sucedido, mas principalmente (porque o imprevisto acontece) sobre a necessidade de elaboração de planos de contingência para outra situação semelhante que venha a suceder. Convenhamos que, se um evento destes não for rapidamente sanado como foi o caso, ele pode gerar um grave problema de repercussões incalculáveis. O nosso modo de vida funda-se na facilidade de comunicação, na transação rápida de informações.

Estaria certamente fora das minhas cogitações, mas o facto é que ontem estive quase doze horas impedido de fazer um simples telefonema para os meus filhos – em tempos que já lá vão a rede telefónica tinha alimentação de energia própria, ou estarei enganado? Lá em casa valeu-nos o pequeno rádio portátil para passar um inesquecível dia… incontactáveis.

Valeu-nos principalmente o apagão ter tido uma resolução rápida.

Sede vacante

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São sempre comoventes as exéquias de um Papa e as imagens das cerimónias em directo do Vaticano para todo o mundo fazem-nos acreditar que de alguma forma a mensagem de Jesus Cristo com dois mil anos é intemporal e supranacional.

É por isso que faz pouco sentido o sectarismo dentro da Igreja Católica entre progressistas e conservadores. É na gestão cuidadosa da permanente tensão entre as inevitáveis facções que Roma vem sendo capaz de realizar que garante a universalidade da instituição. Também porque a Doutrina da Igreja Católica é Universal (desculpem-me o pleonasmo).

Se faz pouco sentido o sectarismo dentro da Igreja Católica, muito menos ele faz entre os não católicos, intrometidos na contenda a opinar nos Media a comoção dos eventos que se vão suceder nas próximas semanas, que culminarão na eleição de um novo Papa. Mas é isso que se verifica nas televisões, entre jornalistas e comentadores, poucos deles católicos, a cavarem trincheiras entre progressistas e conservadores, sendo que para eles os bons são os progressistas e os maus os conservadores. Habituados a comentar lutas partidárias e confrontos políticos não percebem que a lógica da Igreja é outra.

E se chamamos “conservadorismo” ao esforço de síntese entre as várias tensões, à conciliação entre as várias sensibilidades políticas sempre influenciadas pelas diferentes geografias, o mesmo é dizer “culturas”, em consequência o próximo Papa será inevitavelmente apelidado de “conservador”. Em primeiro lugar porque a Doutrina da Igreja Católica, ou seja, as “verdades de fé” que espelham os seus imutáveis valores universais não são negociáveis e não se submetem a modas – assim procedeu o Papa Francisco nas questões fracturantes em voga na decadente Europa. Em segundo lugar porque as mudanças possíveis na Igreja (de regras que não sejam Dogmas), precisamente porque ela é universal, deverá de obedecer sempre a profundos consensos, e por isso essas reformas, a existirem serão sempre muito lentas.

A prevalência da Tradição no lugar da Revolução tem sido o seguro de vida de Roma. A lentidão na mudança tem sido a inspiração divina que garante a sobrevivência desta Instituição por mais de dois mil anos. O próximo Papa, eleito por inspiração do Espírito Santo, será inevitavelmente um Papa para todos, todos, todos. Ironicamente isso irá desiludir a maioria dos jornalistas e comentadores, cujo sustento e quadro mental está formatado para o conflito e para a cisão. 

Uma coisa magnifica e comovente da instituição que é a Igreja é saber que o grande aplauso na praça de S. Pedro surge às palavras 'habemus papa!", não à pessoa que vai cumprir esse papel. Essa é a garantia da sobrevivência da instituição.

Na imagem: o brasão da Santa Sé durante o período de Sede Vacante, o intervalo de tempo em que o Vaticano está  temporariamente sem Papa

Calendário

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Imagine-se como seria a nossa existência se o tempo não se dividisse em ciclos, não tivéssemos dias, semanas ou meses, se fosse tudo um continuo sem estações do ano nem nada. Como orientaria a humanidade a sua existência? É verdade que o tempo passa e envelhecemos independentemente do calendário que criámos baseado na mecânica dos astros e das estações do ano. Provavelmente não deixaríamos de procriar mesmo sem a primavera ou a obscuridade esquiva da noite. Naturalmente que no decorrer do interminável "dia", chamemos-lhe assim, em que decorresse a nossa vida, o nosso organismo nos impeliria a procurar alimento, e imporia alguma ordem e medida temporal. Assim como o cansaço e o sono nos impeliria a procurar alguma penumbra para dormir em sossego. E não estou certo que não procurássemos na natureza algumas referências, por débeis que fossem, que nos situassem em face ao passar do tempo. Tudo uma hipótese completamente absurda, claro está. 

Vem isto a propósito do tempo do calendário que os cristãos se preparam para viver. A propósito da importância dos rituais que nos orientam durante a vida, na devolução de um sentido mais profundo para as rotinas, ou que nos libertem delas, para uma experiência existencial mais rica. É nesse sentido que os cristãos são convidados a viver a Páscoa, a cortar com os hábitos de sempre, no esforço de parar para viver a Paixão e Ressurreição de Jesus Cristo. Isto acontece todos os anos, há cerca de dois mil anos que o calendário nos aponta ao cumprimento de rituais concretos que unem os cristãos na vivencia deste mistério. O mesmo que somos convidados a participar na Eucaristia ao Domingo ou noutro dia da Semana que nos sintamos atraídos a vivê-lo. Foi esta esperança de salvação que Jesus nos outorgou naquela sexta-feira no Calvário em que o próprio véu do tempo se rasgou. Em que o calendário universal para sempre se alterou.

A Vida Eterna começa com a continuidade geracional dos rituais. Ontem uns, outros hoje, os nossos avós antigamente, os nossos netos no futuro, perpetuarão estes rituais. Com uns ou com outros a procura da esperança está-nos nos genes, e foi-nos incutida pela Salvação da Páscoa. É no calendário, nos rituais repetidos, ano após ano, século após século, que intuímos a eternidade. E os descrentes nem sonham a liberdade que esta descoberta nos concede.

  • Na imagem: "O Bom Pastor" que se encontra nas catacumbas de São Calixto em Roma e acredita-se que foi pintada algures no século III.

Até Domingo!

"Adolescência": uma ferida dissecada

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Chamemos-lhe "um filme" (vê-se de uma vez) à série apresentada em quatro episódios de uma hora da Netflix, “Adolescência”, que tanta crítica positiva e comentários elogiosos tem gerado na imprensa e redes sociais. Sou daqueles que me junto a esse coro de admiração. Ao guião, à tremenda prestação dos actores, desde logo Owen Cooper (como Jamie Miller, o adolescente) e Stephen Graham (como seu pai Eddie Miller), e á portentosa realização, num admirável plano de sequência, a história contada através de uma câmara oculta que se desloca entre diferentes panoramas narrativos sem qualquer espécie de corte, coisa que confere um confrangedor realismo.

Um dos aspectos mais relevantes desta série britânica, sobre um assassinato de uma jovem adolescente por motivos fúteis (são sempre) é que a narrativa limita-se a reflectir, de forma crua e às vezes brutal, a acção e diálogos, sem tentar induzir o espectador qualquer julgamento, teoria ou preconceito, deixando isso a cada consciência. Nesse sentido, ao contrário da maioria dos comentários que vou lendo, focados numa suposta perversão da nova geração de adolescentes, reféns da toxicidade das redes sociais ou em fenómenos grupais como o da cultura "incel" (involuntary celibates, "celibatários involuntários" frustrados pela incapacidade de seduzirem uma miúda), parece-me que a serie releva-nos antes a arbitrariedade de causas e razões que a maior parte das vezes é a ignição do mal, da violência ou da imoralidade. É mais saudável e verdadeira esta conclusão do que a busca de uma suposta teoria sobre uma suposta decadência da civilização, na procura de uma profilaxia eficaz. O mais próximo disso que encontramos é no eloquente episódio decorrido na escola de Jamie, o alegado assassino de treze anos, onde nas salas de aula, corredores, recreios e campos de jogos, na omnipresença de telemóveis nas mãos de cada aluno, nos é exposto um ensino público em profunda decadência. Apesar do tradicional uso britânico da farda, do blazer e gravata, esses artefactos usados ostensivamente a trouxe mouxe relevam-nos para a total ausência de autoridade (desprezo), para o deslaçamento da comunidade escolar - significativa a cena da chegada, atrasado, à sala de aula de um professor substituto estremunhado a apertar as calças, perante os alunos em total rebaldaria.

A adolescência sempre foi uma idade difícil, e não o era menos antes da proliferação da internet, dos jogos electrónicos e redes sociais que hoje mantêm as crianças em casa em enganador sossego. O perigo espreitava a cada esquina nas ruas e nas escolas, onde pairávamos aos magotes à procura de aventuras e a explorar o desconhecido. O mal esconde-se e revela-se onde menos se espera, emergindo numa conjugação de factores e estímulos quantas vezes incontroláveis. A única coisa que sabemos é que a mentira escraviza como a verdade liberta. Que Deus nos dá a escolha, o livre arbítrio. E ao final do dia, na penumbra do horror da culpa, dos destroços do mal e da morte, ainda assim nos concede o perdão.

É ingenuidade a pretensão de erradicar o mal na humanidade, nessa matéria não há progresso. Poder-se-ão aventar causas prováveis, sugerir explicações, mas jamais haverá profilaxia. Hoje como há dois mil anos, há 10.000 anos, a nossa única salvação está em Deus, que os modernos se esforçam em matar. Mas desenganem-se eles. Como terminava há dias no Observador o Pe. Gonçalo Portocarrero de Almada numa crónica precisamente sobre o que nos atira à cara esta impressionante série é “o que resta de uma vida, de uma família e de uma sociedade sem Deus, o grande ausente. Afinal, não há bons selvagens, porque a lei da selva é impiedosa. Deus é amor (1Jo 3, 8.16) e, por isso, só Ele é o caminho, a verdade e a vida (Jo 14, 6).”

Há esperança, como nos é dado ver nas últimas cenas de “Adolescência”. A verdade liberta, e isso é já meio caminho para a Salvação.