Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

João Távora

Viagem a um tempo que parou

 

Encalacrado pelo trânsito, subo lentamente a turvada Avenida Almirante Reis num fim de tarde outonal. A chuva cai copiosa por cima duma paleta de cinzentos donde se destacam as luzes dos carros, brancas e encarnadas dependendo do sentido da marcha, num vagaroso pára-arranca. O cenário é-me familiar, reporta-me a sensações antigas com quarenta anos: o cheiro a húmido do autocarro quase cheio, os neons que rebrilham nas poças de água, os vultos apressados, escondidos nos chapéus e agasalhos pardacentos, por entre o fumo do assador de castanhas que se mistura com baforadas dos escapes impacientes. De que me servem a banda larga, as tendências da moda, as redes sociais, a modernidade e a literatura ou um estúpido smart phone? Com um calafrio perco-me momentaneamente numa Lisboa bárbara e sem idade, que é de hoje como da minha infância. Revejo-me num grupo de miúdos encarapuçados e de mochilas às costas, que no passeio me ultrapassa em eufórica algazarra disputando aos pontapés uma lata amolgada. Uma velha espreita desconfiada à porta duma loja deserta e mal iluminada: quantas gerações de incógnitos malandrins já terá ela visto passar e crescer daquela soleira? Se as memórias antigas são a preto e branco, nada como um cinzento e chuvoso fim-de-tarde para uma  viagem a um tempo que parou. O tempo parou como se vivêssemos um eterno retorno, escravo das estações do ano, das horas do dia, como se não houvera sentido, se não a rotação outra vez e outra vez. Mas por estranho que pareça, do meio deste bloqueio temporal, mais tarde ou mais cedo, todos irão chegar aos seus misteriosos destinos. Subitamente tenho saudades de casa.

1 comentário

Comentar post