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João Távora

Sem a casa que pusemos no lugar da noite

 

O meu menino resiste ao sono, como se fora um cálice de morte; tem medo do escuro. Daquele momento em que se lhe silencia a alma entre a última brincadeira e o sono profundo. Conheço bem esse território de ninguém, que de tão silencioso se nos ouvem as entranhas, num ritmo batido pelo coração. Onde mora um ensurdecedor silêncio que amplifica o medo de não se voltar do fundo do fundo, onde se estabeleceram demónios dançantes, auroras boreais, aterradores animais: como num infindável castigo de existir, solto no frio do eterno espaço.

O meu menino tem medo da noite e implora-me mais uma história, mais uma canção. Agarra-me a mão com a sua mãozinha sôfrega, para que eu o ampare na descida à profundeza do vazio sem memórias, risos nem afagos, como um quarto escuro sem frestas, onde do nada se desenham os monstros pavorosos, de não ter colo nem pertença.

Estremunhado a meio da noite escura, qual heróico cavaleiro do apocalipse, o meu menino salta da cama, e com a bravura dos insanos atravessa os corredores das sombras, e as portas dos murmúrios. Num salto aninha-se ao meu lado de olhos esbugalhados, exausto da demente batalha, como quem privou com a morte, nos rumores do vazio. A salvo de volta a casa, o meu amor.