A vergonha
Há umas semanas, ouvi de passagem o Papa Francisco adjectivar o sentimento de “vergonha” como belo. Desde então que tinha vontade de escrever sobre a vergonha, possivelmente o mais nobre sentimento humano. Não, esta crónica não tem que ver com a divulgação do relatório sobre o abuso de menores dentro da Igreja, que naturalmente me envergonha como católico, nem com a chamada “vergonha alheia”, que pelo facto de ser projectada para fora da jurisdição individual, de pouco serve aos visados – não os constrói. Nada se cura de fora para dentro a não ser uma perna partida.
A vergonha de que falava o Papa Francisco é aquele sentimento embaraçoso que nos assalta quando cometemos um erro (ou quando o recordamos tempos depois), e é tão mais opressivo quanto tivermos consciência desse mesmo erro. Essa consciência é potenciada pelo olhar dos outros. Por exemplo, é uma grande vergonha um escritor publicar um flagrante erro ortográfico, ou um pai ser apanhado a fazer batota na disputa de um jogo com um filho que a detecta. A dimensão da vergonha tem que ver com a medida em que o acto denuncia uma fragilidade que não se gostaria de ver revelada, quantas vezes desconhecida ou negada pelo infractor. Dado que todos temos as nossas fragilidades, é normal que de tempos a tempos sejamos traídos por uma ou outra. Por isso é que o sentimento de vergonha revela acima de tudo um desejo de perfeição. Esse desejo de perfeição é a nossa medida de humanidade. O embaraço com uma vergonha não nos faz mais imperfeitos, antes significa um passo no nosso crescimento como pessoas. Pessoas exigentes, inconformadas com o papel que assumem na família, no trabalho, na comunidade. Daí que quando observarem alguém a corar de vergonha por alguma falha flagrante, use-se a caridade que merece uma pessoa no seu processo de humanização. Só se envergonha verdadeiramente quem é inconformado com a sua precária condição. A falta de noção dessa imperfeição (pecado) é a fonte dos maiores problemas que enfrentamos em sociedade. E só se resolve de dentro para fora, a partir de cada um, algo incompreensível numa cultura viciada no escândalo e de dedo rem riste. E claro, a vergonha faz-nos muita falta.
Afinal talvez esta crónica tenha algo que ver com os pecados de membros da Igreja Católica ora denunciados.