Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

João Távora

Do cancelamento à luta de classes

palavrões_F-1200x675 (2).jpg

Que o mundo em que vivemos neste lado do planeta cada vez mais se parece com um manicómio, não será novidade para ninguém, mas mesmo cansados de tanto espanto talvez continue a valer a pena questionarmo-nos. Por exemplo: já repararam como aquela moda dos filmes negros norte-americanos com diálogos cheios de vernáculo de teor sexual, ao pior estilo das prisões penitenciárias, extravasou as fronteiras e se vem alargando ao cinema e televisão mainstream? No meio desta onda puritana com tanta gente tão sensível e ninguém reclama das séries e filmes onde por estes dias a linguagem falada está ao nível mais rasteiro e agressivo, seja pela boca dum príncipe ou duma meretriz? Obviamente nada tenho contra o calão e também nada me chocam os mais duros palavrões, desde que no devido contexto - possuem propriedades libertadoras quando usados com parcimónia. Ora, as palavras têm significados; por mais que se vulgarizem os palavrões, eles possuem um significado, expressam uma acção, com um potencial de chamar a atenção pelo “escândalo”. Se essa terminologia, tremendamente agressiva for usada com insistência, o seu efeito semântico perde-se, a não ser que o fim pretendido seja a expressão de uma identidade grupal – “eu falo assim porque é assim que se fala no meu grupo, com quem eu me identifico e onde eu pertenço”. Será isso que acontece com os grupos de jovens adolescentes ou em certos meios portuenses: estou convencido que muitos tripeiros recorrem àquela terminologia sem lhe atribuir qualquer significado. No entanto convém não esquecer que as palavras comportam significados e que servem para nos entendermos uns aos outros, para o bem e para o mal. Gritar uma blasfémia quando espetamos o dedo pequeno do pé na ombreira da porta é a legítima expressão de um compreensível estado de espírito. Ora, se se repetir recorrentemente a blasfémia, que expressão se irá usar numa situação de choque ou de dor?
 
Preocupa-me que a agenda puritana e literalista de controlo da linguagem tenha origem nos mesmos que pretendem normalizar a obscenidade e o vernáculo
. É um caminho de empobrecimento, um retrocesso ao mais básico da humanidade, onde deixa de ter importância o bem ou o mal, muito menos o feio e o belo, ou a complexidade trágica da humanidade. Ficam só sentimentos voláteis e sensações de circunstância.
 
Ao eliminar-se a sofisticação e a classe chegaremos finalmente à almejada sociedade sem classes. Deve ser isso.