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João Távora

Evocação de Luís Abrantes por Maria Velho da Costa

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Durante cerca de um ano, convivi e trabalhei, quase diariamente, com Luiz de Lancastre e Távora, Luiz de Abrantes, como gostava de assinar e ser conhecido. Aquele outro nome, o de Távora, há séculos que atrai malefícios.

No meio profissional, no cívico e no político, era o Marquês de Abrantes, sem altivez onde não lhe a provocassem, mas sem pejo do peso do título, feito nome de guerra. Acho que nos entendemos muito bem porque ele não tinha preconceitos que não pudessem ser aferidos ou dispensáveis à mesa e convívio de quem lhe aprouvesse. Tal como Sophia de Mello Breyner, e mais copiosamente dito no seu prefácio ao Dicionário de Famílias Portuguesas, ele sabia que a nobreza é um acidente de carácter muito longamente fabricado e não necessariamente aristocrático. Todos vimos de D. Afonso I e dos seus almocreves. A sua gentileza irónica e o apetite por todas as artes (não de somenos a gastronomia) fizeram o mais de uma cumplicidade tão alegre como profícua.

Perdeu-se alguém que era generoso sem ser incauto, nas ideias, nas emoções, até na confidência e na memória de agravos, que podia ser ácida, mas nunca malevolente. Vibrava com o que fosse criador ou até apenas divertido e, assim, embora fosse curioso do trivial dos factos e dos seres, não se atardava no mesquinho. Escasseasse de meios e de saúde e falasse de tempos em que comera o pão que o diabo amassou, não guardava rancor, nem resistia a algum supérfluo e à expectativa de desafogo. Magoado, não era sovina, nem de si, nem de muita informação de que dispunha. Resmoneava um pouco de achaques próprios e malfeitorias alheias e seguia para o riso e para o trabalho a seu ritmo, nem frenético nem negligente.

Assim chegámos bem a finais de 1992. Tinha-me dado a ler o manuscrito da bibliografia de D. Leonor de Távora, O Tempo da Ira, que a Quetzal viria a editar postumamente. Trabalhávamos com muito proveito meu e entendimento mútuo no projecto As Damas de Longe, série ficcional para imagem com muito dado histórico e peripécia verídica de banda desenhada. Pasmava-me a agilidade da sua imaginação sempre dentro das baias do plausível. Apercebíamo-nos de que o mal, a cupidez, a crueldade e a ganância nos escapavam das viagens e paixões das décadas da Índia, não por sermos bons, mas porque éramos coniventes na apreciação daquela gente desvairada. De então e de alguma vez de aqui e agora. A indulgência com os homens é uma forma de timidez, ou de fadiga, ou apenas um prenúncio de sabedoria feliz, escrevia ele para o computador novo, que o encantava. Catarina Pirró, a adolescente plebeia que seguira Garcia de Sá para as Índias, feita grumete, não entendia nem concordava nada com estes propósitos que Luiz de Abrantes punha na boca do namorado: Credo, meu Senhor, pareceis a Augustina Bessa-Luís! Ríamos bastante e ele ufanava-se com a semelhança que eu lhe achava, até da feição menineira, com Renoir, o cineasta: Les femmes, il faut d’abord les faire rigoler.

De saúde, ia fazendo planos de cuidar-se mais, nem sempre adiados. E, desprendidamente terno como era nos afectos, ora achava de mais ou de menos os cuidados que inspirava aos seus. Como toda a sua decifração da História e da Heráldica e da Sigilografia parecia por vezes cata de fraudes e desdém de pretensões. Até a sua venerada D. Leonor morrera porque tinha todas as virtudes e dons, excepto o talento de bem fazer a sobrevivência, sua e dos seus. A belíssima senhora fora assim carrasco e vítima. Eu pasmava de tanta lucidez nos bastidores da tragédia. Onde estava o conservador convicto, o detractor de Pombal, o homem que vituperava outras arrivistas tiranias? Não consigo ter rancores, disse Luiz de Lancastre e Távora. Mesmo quando já só abro a televisão e o guardanapo e me sinto muito mal, a minha vida é para diante, ou tão para trás na infância, quando tinha as algibeiras cheias de novidades. Verdade seja que ele guardava a dedicação em óvulos de plástico, invólucro de chocolates, e era curioso como um menino. Inesperado salto, quando agora tudo lhe parecia ir mais de feição. Porém, crente como era e poupado a uma agonia longa, é possível que tenha morrido na alegria, fazendo jus ao timbre do contraditório nome que fez tremer Lisboa: um golfinho de prata, sainte de uma capela de ramos folhados de verde e floridos de oiro.

 

Maria Velho da Costa, Revista Oceanos - Junho de 1993

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