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João Távora

“Não somos criados para o conforto, mas para as coisas grandes”

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A frase que adaptei como título desta crónica é retirada do discurso do Papa Bento XVI a 25 de Abril de 2005 às delegações e peregrinos de língua alemã em Roma por ocasião da sua eleição e ficou a ressoar na minha consciência nas semanas que se seguiram à sua morte. Porque encaixa na percepção que tenho dos caminhos da decadência que nos atraem por estes dias no ocidente niilista. Ao conforto todos nos sentimos atraídos - como diz o povo, disso até os bichos gostam. Mas das pessoas espera-se que exijam algo mais.

É no conforto que investimos grande parte dos nossos recursos: uma casa confortável, decorada com os mais variados objectos que nos devolvam harmonia e identidade, equipada com o necessário para elaborar sofisticadas refeições para a família e os amigos, livros dos nossos autores preferidos à mão de semear, um sistema de som que transforme a sala numa sala de concertos, etc. etc.. O problema é que, ao final do dia, parece-me evidente que não é nada disto que nos realiza, antes amolece-nos como papalvos. Bem sei que nos podemos inscrever no ginásio a massacrar o corpinho ou participar noutros desafios, até solidários, que o "mercado" nos oferece. Pela minha parte, quando me encolho no conforto com demasiado afinco e por demasiado tempo, consome-se-me a longevidade, estagno-me na lassidão, e revolve-se-me a ansiedade, numa urgência de ressurreição. Quando muito o conforto é um ponto de partida que nos desafia a coisas grandes. Amaldiçoado será o príncipe, mesmo suplente, que rejeita o privilégio de serviço vitalício ao seu povo. 

Não se julgue que os grandes feitos são só como os do escritor que vê impressa a sua obra prima, do cientista que depois de anos de extenuante investigação descobre a cura para uma doença fatal, da conquista duma medalha olímpica pelo desportista, ou a tomada de posse do político após uma vitória eleitoral – essas são coisas grandes, sim, mas as mais importantes "coisas grandes" a maior parte das vezes ficam anónimas, não brilham na ribalta, são obras de cura e harmonia que obtemos para os outros, ou até conflitos que evitámos pelo silêncio. As coisas grandes são sempre para os outros, salvam alguém ou alguma coisa, é assim que as usufruímos em pleno. Podem ser pequenas na aparência; uma visita a uma pessoa só a partilha de um bem escasso – o saber ouvir. Mas já é do âmbito de "coisa enorme" o filho que cuida disciplinadamente do pai enfermo, que já não irá agradecer. É uma coisa enorme oferecer sem pedir de volta. Se isso se tornasse moda, era um pouco de Céu que se replicava na Terra. Desenvolver a capacidade de fazer "coisas grandes" é civilização, é o que devemos ensinar os nossos filhos, desde logo pelo exemplo. É urgente despertar-lhes o bichinho de fazer coisas grandes, um dom democrático ao alcance de todos, porque esse é o sopro divino que nos foi dado e nos distingue da restante criação. Só possível a partir de cada pessoa e na sua medida, eu sei. É construirmos um mundo melhor de dentro para fora sem desfalecer com os tropeções, que as contas se fazem no fim.

Julgo que esta é a matriz da Europa cristã que Bento XVI tanto se preocupava em preservar e que vai capitulando à conquista do conforto tido como um fim e si. Não deveria o conforto ser apenas o ponto de partida para as "coisas grandes" ou estará condenado a ser a causa da distracção e amolecimento das vontades?

Esta é a minha modesta e tardia homenagem a Bento XVI. 

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