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João Távora

Entre as brumas da memória

Bisavós com avô João.jpg

Sendo a nossa vida terrena, mais do que limitada pelo tempo, limitada pelas memórias que guardamos depois de adquirirmos consciência, estou convencido de que a existência de cada um ganha um alcance temporal superior se adicionarmos à razão outros sentidos como o da intuição. Onde eu quero chegar com este raciocínio extravagante? Quero dizer-vos que, se formos dotados com curiosidade suficiente e tivermos convivido com intimidade com pessoas mais velhas que nós, conhecido de perto os seus ambientes e realidade circundante, hábitos, costumes e acontecimentos marcantes – históricos e familiares, conseguimos ter intuitivamente uma perna na sua época. Explico-me: o meu pai nasceu em 1937, cresceu numa casa que conheci bem, desvendou-me os seus livros, filmes, e músicas preferidas, além dos acontecimentos políticos nacionais e mundiais que o afligiram. Por outro lado, conheci o liceu que frequentou, muita da iconografia que o rodeava chegou ao meu conhecimento, desde automóveis e autocarros em que ainda andei, revistas juvenis como o Cavaleiro Andante ou a Fagulha, e muitos dos filmes que viu na infância ou juventude. Como eu mais tarde, viu as primeiras grandes metragens da Disney que o encantaram, o “Feiticeiro de Oz”, ou “E Tudo o Vento Levou”, e muito Charlot, Looney Tunes e canções francesa. Sei como admirava a beleza de Rita Hayworth ou Lauren Bacall que aos meus olhos é muito compreensível. Ainda hoje me comovo a ver “Breakfast at Tiffany's” uma fita que ele adorava, com a Audrey Hepburn no sue auge. Esse filme foi estreado no ano em que nasci, acontecimento de que não tive qualquer consciência – não basta estar vivo para ter a noção de algo que acontece. Aliás, dos primeiros anos da minha vida a maior parte das memórias são emprestadas – tenho uma vaga ideia de assistir a um jogo do Mundial de 1966, julgo que na casa duns amigos dos meus pais – nem toda a gente tem a memória prodigiosa de José Sócrates.

A pessoa mais “antiga” que conheci foi a minha bisavó Valentina da Silva Leitão, que nasceu em 1888 e morreu em 1973 quando eu tinha 12 anos. Convivemos muito, na sua casa, na Avenida da Liberdade 232, no andar que estreou em 1892 – aquelas paredes testemunharam a angústia do regicídio, a revolução dos republicanos, muita correria e tiros na rotunda. A Avó Tina, como lhe chamavam os netos, gostava muito de contar histórias que eu ouvia com atenção, enfeitiçado com as suas mãos deformadas pelo reumático. Muitas outras histórias me eram transmitidas nos salões daquela casa onde a sã conversa era cultivada. A curiosidade, os livros, fotografias e muitos testemunhos que me chegam fazem com que consiga meter um pé bem no início do século XX. Tenho um recorte de jornal que noticiava que ela partira um pé num passeio a cavalo ali para os lados da Ajuda, com o avô José com quem namorava. Como era regra de uma menina bem-educada daquela época, depois de ficar precocemente viúva levou uma vida austera, cuidando da sogra e da grande casa, não mais tendo vestido roupa colorida. Católica devota, assistiu ao milagre do Sol a treze de Outubro de 1917 em Fátima, acontecimento que gostava de relatar, e o seu mundo misturou-se desse modo com o meu. Nele penetro em peças ultra-românticas do final do século XIX, através de imagens pias de Nossa Senhora ou do Sagrado Coração de Jesus a preto e branco, ou através dum disco de goma laca de 78 rpm que nunca ouviu na juventude porque não era dada a extravagâncias.

Para trás dessa geração tenho dificuldades intransponíveis de imiscuir a minha imaginação, a minha vida não chegou lá. Não recebi directamente relatos ou memórias, não experienciei nada daquelas realidades. Só lhes acedo através das pedras puídas da cidade, dos livros ou em imagens estáticas, solenes, sem afectos. Sem deixar de ser fascinante, a informação passa ao âmbito da História, longínqua e obscura para os meus sentidos.

Esta é uma teoria em que venho reflectindo e que achei interessante partilhar com os meus leitores: sem prejuízo do fascínio do desafiante presente, até onde no tempo cruzámos afectos e experiências a nossa alma alcança, como se tivéssemos lá estado. Apesar de ter nascido apenas em 1961, a minha consciência – intuição? – chega bem mais lá atrás. Uma vida que se alonga longa, portanto. Já para o futuro a viagem é impossível, com a certeza de que nos enganaremos sempre nas previsões, pois não privámos com ninguém vindo de lá.

Na imagem: Os meus bisavós Valentina e José (Condes de Castro) com o meu avô e padrinho homónimo pela mão, com o seu basset em 1911 passeando na Avenida das árvores na Granja