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João Távora

O caso do beijo roubado

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Confesso, aqui para nós que ninguém nos ouve, que gosto da expressão “roubar um beijo”, e julgo que já o tenha feito noutra vida, numa discoteca ou festa de garagem. Se em tempos tal poderia ser visto como um pecado (em minha casa as festas de adolescente eram às claras), hoje roubar um beijo pode tornar-se ilegal; ou pior que isso, estourar com uma carreira profissional ou política. Soube há pouco que a jogadora espanhola Jenni Hermoso, campeã mundial de futebol feminino, recorreu ao seu sindicato para reclamar a cabeça do presidente da Federação Luís Rubiales, por causa do beijo na boca que lhe foi roubado nos eufóricos festejos do título. Pelo que me foi dito este era um dos assuntos mais debatidos nas redes sociais até à queda do avião de Prigozhin ontem na Rússia, e por isso o trago aqui, se é que ainda chego a tempo.

Descontando o facto de estarmos em Agosto, quando o sol bate forte nas cabeças dos veraneantes desocupados, garantem-me que o assunto é sério, que o caso é uma lição pública na luta pela igualdade e contra os abusos do patriarcado opressor. De facto, Rubiales exagerou na expressão do seu entusiasmo pela vitória das espanholas no Campeonato do Mundo, uma modalidade recente com dificuldade em afirmar-se comparativamente à sua correspondente masculina. Pelas imagens até parece que o presidente Rubiales roubou aquele beijo “sem querer”. No mundo civilizado em que cresci, um rapaz roubar um beijo a uma miúda “sem querer” seria motivo para um mui clássico estalo – ou bem que queria ou não queria. Imaginem que tinha sido a selecção portuguesa a ganhar e que no fim da épica vitória era o efusivo Marcelo a distribuir as medalhas no calor dos festejos... De qualquer maneira não se perdeu tudo: foi por causa deste escândalo que eu soube que a Espanha havia ganho o torneio à selecção inglesa, que por alguma estranha maldição nunca mais ganhou nenhum troféu desde que eliminou os portugueses, naquela malfadada meia-final de 1966.

Soube no outro dia que as amigas da minha filha, a acabar o curso de direito, muito cientes das disputas igualitárias em voga, são adeptas da proibição legal de determinados sketches humorísticos. Admitindo que há anedotas e piadas de muito mau gosto e crueldade, jamais me passaria pela cabeça a sua proibição. Admitindo a dificuldade de classificar os limites duma expressão sentimental dum homem para com uma mulher, entre o admissível e abuso, custa-me aceitar o policiamento das relações entre mulheres e homens adultos. E o julgamento na praça pública de um acto inadvertido por uma claque de moralistas ávidos de bodes expiatórios para o seu revolucionário consolo igualitário. Também por isso não me admiro que o clássico “Fat Bottomed Girls”, dos Queen, tenha sido removido duma nova versão do álbum “Greatest Hits” para miúdos. Cuidado com aquilo que desejam, ou isto ainda se torna mais puritano que uma sacristia no século XIX. Ou, por outras palavras, temo que as velhas tentações tirânicas nos estejam a entrar em casa por baixo da porta.