O mundo de pernas para o ar
Era o que faltava, para a percepção de um mundo cada vez mais desconexo, refém dum sistema mediático atomizado e caótico como a própria geopolítica, que o Chefe de Estado do velho aliado do Ocidente, a terra das oportunidades, depois de ter sugerido que se evacuassem os dois milhões de pessoas que vivem na Faixa de Gaza para a transformar numa “Riviera do Médio Oriente” (uma solução quase tão fantasista quanto a dos dois estados), viesse agora reclamar à provecta, decadente e estéril Europa que, em matéria da invasão da Ucrânia, o mau da fita afinal é Zelensky. Pior, pôs em causa a sua legitimidade democrática que é o argumento base de Putin para umas possíveis negociações de paz, um grande soco no tabuleiro do conflito. As peças voaram pelo ar, e o discurso dos líderes europeus embatucou na triste realidade da sua impotência.
Há muito que a política das democracias liberais deslaçou, se navega à vista, num plano inclinado de empobrecimento e de referências culturais. Há muito tempo que bons argumentos, as razões justas, foram capturados pelos mais obscuros arrivistas, energúmenos que ocuparam o espaço vago das verdadeiras elites que se demitiram de lutar na lama e higienicamente se recolheram a cuidar das suas vidas. É a proletarização do cargo público, que por cá promove a mediocridade e os políticos de estufa. Os resultados não se farão esperar.
Descoberta a frivolidade da abundância alcançada no final do século XX, cansámo-nos de ser felizes, e principalmente desprezou-se a fórmula para alcançar essa felicidade. Ninguém lhes disse que a felicidade é como a linha do horizonte. O mérito do esforço, da perseverança, um ideal comunitário que justificasse a permanente prorrogação duma recompensa sempre adiada. JD Vance afirmou recentemente que o inimigo da Europa está no seu seio “uma ameaça interna – a perda de alguns de seus valores mais fundamentais”. Estou plenamente de acordo, mas essa frase esquece que grande parte dessa doença chega-nos importada justamente das universidades norte-americanas. Lá como cá, sem geração, centrados nos direitos individuais e tantas inalcançáveis fantasias, cimentámos uma sociedade niilista, sem compromissos, sem pertenças, e repito – sem geração.
Como referia há dias Patrícia Fernandes no Observador: “(…) é por termos uma família que fazemos muitas das coisas que fazemos, nomeadamente, todo o tipo de sacrifícios para lhe deixarmos um mundo melhor, seja uma vida mais confortável e com menor sofrimento, seja um regime político mais democrático e livre. Até muito recentemente na história da humanidade, a família constituía o primeiro ponto a partir do qual nos pensávamos no mundo – o entendimento individualista do homem é um produto da modernidade, e o individualismo exacerbado um subproduto muito recente.” Como bem sabemos, a família fecunda, conceito retrógrado, está em vias de extinção.
Olho para o mundo e ele parece-me virado de pernas para o ar. Sei bem que a enorme complexidade dos desafios em jogo neste lado do planeta jamais nos permitirão uma perceção satisfatória (realista) do que nos espera. É nessa a nesga de esperança que me permito acreditar num futuro próspero para os meus filhos. Mas no imediato não encontro saída satisfatória do imbróglio criado.
Terá a democracia liberal em que crescemos resultado num rotundo falhanço?