Os valores ocidentais, graças a Deus
Com os votos de uma Santa Páscoa, aqui partilhamos a tradução do fabuloso artigo "Thank God for western values" de Tom Holland publicado no último número da revista The Spectactor, sobre o impacto do cristianismo e do escândalo da crucificação de Jesus na matriz do pensamento ocidental.
Esta Semana Santa tem sido pródiga em declarações de esperança de que a catedral de Notre Dame pode ser ressuscitada. É esta a lição da Páscoa: que a vida pode surgir da morte. Ao contrário da Torre Eiffel, o outro grande símbolo de Paris, Notre Dame, proporciona aos franceses a evidência de que a sua república moderna e secular tem as fundações profundamente enraizadas na Idade Média. Notre Dame foi sempre mais do que um conjunto de pedra e vitrais. É também um monumento a um passado especificamente Cristão.
No verão passado, um dos cientistas mais conhecidos a nível mundial, um homem famoso pelas suas polémicas contra a religião e pelos seus escritos sobre biologia evolucionária, sentou-se noutra catedral, Winchester, a ouvir os sinos. ‘Muito melhor que o som agressivo de “Allahu Akhbar”,’ partilhou no Twiter Richard Dawkins. ‘Ou será apenas a minha formação cultural?’ Uma preferência por sinos da igreja face ao som dos Muçulmanos a rezar a Deus não surge por magia. Dawkins — sendo agnóstico, secularista e humanista – partilha em absoluto os instintos de uma pessoa criada numa civilização Cristã.
Talvez então a dívida do Ocidente contemporâneo à Cristandade seja mais profundamente enraizada do que muitos - crentes e não crentes – possam pensar.
Hoje, à medida que a maré de poder e influência do ocidente se esvazia, as ilusões dos liberais Europeus e Americanos estão em risco de ficar encalhadas. Muitos dos que procuraram classificá-las como universais, provaram nunca ter sido nada disso. Os livres pensadores, que fazem troça da própria ideia de Deus como uma fada do céu, um amigo imaginário, ainda mantêm tabus e costumes que derivam evidentemente do Cristianismo. Em 2002, em Amesterdão, o Congresso Humanista Mundial afirmava ‘o valor, a dignidade e a autonomia do indivíduo e o direito de cada ser humano à maior liberdade possível compatível com os direitos dos outros’. No entanto esta — apesar da ambição referida pelos humanistas de proporcionarem ‘uma alternativa à religião dogmática’ — não era mais do que uma declaração de crença. O pressuposto humanista de que o ateísmo e uma preocupação pela vida humana são complementares é apenas isso: um pressuposto. Que base – além da mera sentimentalidade – existe para o defender? Talvez, como referido no manifesto humanista – através da ‘aplicação dos métodos da ciência’. No entanto, isto é tanto um mito como a história bíblica de que Deus criou a humanidade à sua imagem. Não é a verdade que a ciência oferece aos moralistas, mas um espelho. Os racistas identificam-se com valores racistas; os liberais com valores liberais. O dogma primordial do humanismo — ‘que a moralidade é uma parte intrínseca da natureza humana e uma preocupação para os outros’ — não encontra mais corroboração na ciência do que o dogma dos Nazis de que qualquer pessoa que não fosse apta para a vida devia ser exterminada. A fonte dos valores humanistas não reside na razão, no pensamento baseado na evidência, mas no passado, e especificamente na história do modo como um culto inspirado pela execução de um criminoso obscuro num império há muito desaparecido surgiu para se tornar – como o grande académico Judeu Daniel Boyarin o apresentou - ‘o mais poderoso dos sistemas culturais hegemónicos na história do mundo’.
A história da Páscoa centra-se no coração desta narrativa. A crucificação, na opinião de intelectuais Romanos, não era um castigo como os outros. Era particularmente adequado aos escravos. Ser crucificado nu, sem poder afastar os pássaros que gritam, ‘numa agonia prolongada’, como o filósofo Séneca o apresenta, ‘tumefacto, com marcas horrendas nos ombros e no peito’, era o pior de todos os destinos. No entanto, na exposição do crucificado ao olhar do público residia um paradoxo. O odor da sua desgraça era de tal forma fétido que muitos se sentiam contaminados só por ver uma crucificação. Certamente, poucos paravam para pensar sobre isso em detalhe. A ordem, a ordem amada pelos deuses e cumprida pelos magistrados investidos com toda a autoridade do maior poder na terra, era o que importava — não a eliminação dos vermes que a punham em causa. Algumas mortes eram tão vis, tão sórdidas, que o melhor era passar completamente um véu sobre elas.
A surpresa, então, não se prende com o facto de termos tão poucas descrições pormenorizadas na literatura antiga do que uma crucificação poderia realmente envolver, mas antes de termos algumas. No entanto, entre o silêncio generalizado, há uma excepção principal que comprova a regra. Quatro descrições detalhadas do processo pelo qual um homem podia ser condenado à cruz, e sofrer o seu castigo, sobreviveram da antiguidade. Estas descrições são encontradas, claro está, no Novo Testamento. Não há razão para duvidar dos seus pontos essenciais. Mesmo os historiadores mais cépticos tendem a aceitá-las. Nas palavras de um dos mais conceituados, Geza Vermes, ‘A morte de Jesus de Nazaré na cruz é um facto estabelecido, possivelmente o único facto comprovado sobre ele.’
Mais controversas, claro, são as histórias sobre o que aconteceu a seguir. Que as mulheres, indo até ao sepulcro, encontraram a pedra da entrada movida. Que Jesus, ao longo dos 40 dias seguintes, apareceu aos seus seguidores, não como um fantasma ou um cadáver reanimado, mas ressuscitado numa nova forma gloriosa. Que subiu ao céu e deverá voltar um dia. O tempo viu-o aclamado, não apenas como homem, mas como Deus. Ao enfrentar o destino mais angustiante que se possa imaginar, tinha conquistado a própria morte. ‘Por isso mesmo é que Deus o elevou acima de tudo e lhe concedeu o nome que está acima de todos os nomes, para que, ao nome de Jesus, se dobrem todos os joelhos, os dos seres que estão no céu, na terra e debaixo da terra…’
A completa estranheza de tudo isto, para a grande maioria das pessoas no mundo Romano, não reside na noção de que um morto se pode tornar divino. A fronteira entre o celeste e o terrestre era vastamente considerada permeável. A divindade, no entanto, era para os maiores entre os grandes: para vencedores, e heróis, e reis. A sua medida era o poder para torturar os seus inimigos, e não sofrer a tortura por si próprio. Mesmos os Cristãos nos primeiros anos do culto, poderiam vacilar ao encarar de frente a forma da morte de Jesus. Tinham as mesmas conotações da crucificação que todos os outros. Paulo, o mais bem sucedido e influente dos primeiros missionários, descreveu prontamente a execução de Cristo como um ‘escândalo’. A vergonha foi sentida por muito tempo. Apenas séculos depois da morte de Jesus começou a sua crucificação a surgir como um tema aceitável para os artistas. No ano de 400 DC a cruz começava a deixar de ser vista como uma coisa vergonhosa. Banida como um castigo décadas antes por Constantino, o primeiro imperador Cristão, a crucificação começou a ser encarada pelo povo Romano como um sinal de triunfo sobre o pecado e a morte. Um artista, ao esculpir a cena em marfim, poderia representar Jesus com tanga esfarrapada como um atleta. Não parecendo derrotado, seria apresentado não menos musculado ou dilacerado que os deuses antigos.
Nós somos os herdeiros de uma forma posterior, mais inquietante, da crucificação de Cristo. O Jesus pintado ou esculpido por artistas medievais, torcido, ensanguentado, a morrer, foi uma vítima de tortura, tal como os carrascos originais teriam reconhecido. A reposta ao espectáculo, foi retirada da mistura de repulsa e desdém que tinha sido atribuída pelos antigos à crucificação. Os Cristãos na Idade Média, quando viam uma imagem do seu Senhor na cruz, com os pregos cravados nos tendões e ossos dos pés, com os braços estendidos de tal forma que pareciam arrancados dos ombros, com a cabeça coroada de espinhos caída sobre o peito, não sentiam desprezo, mas compaixão, pena, e medo. Que o Filho de Deus, nascido de uma mulher e condenado à morte como um escravo, tivesse morrido sem reconhecimento dos seus juízes, era uma reflexão digna de fazer parar mesmo o monarca mais poderoso. Este conhecimento não podia deixar de introduzir nas consciências dos Cristãos medievais uma suspeita visceral e extraordinária: que Deus estava mais próximo dos frágeis que dos poderosos, dos pobres que dos ricos. Qualquer pedinte, qualquer criminoso, poderia ser Cristo. ‘Assim os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos.’
O Cristianismo tinha revelado ao mundo uma verdade extraordinária: que ser a vítima poderia ser uma fonte de força. Ninguém nos tempos modernos viu isto mais claramente que o crítico mais brilhante e mais implacável da religião. Foi devido ao Cristianismo que Friedrich Nietzsche escreveu, ‘a medida da compaixão de um homem pelos humildes e pelo sofrimento passa a ser a medida da elevação da sua alma’. Os lugares do poder da cultura ocidental podem agora estar ocupados por pessoas que descartam o Cristianismo como superstição; mas os seus instintos e pressupostos não deixam de ser menos Cristãos por isso. Se Deus está de facto morto, então a sua sombra, imensa e terrível, continua a cintilar mesmo com o seu cadáver já frio. O Cristo ressuscitado não pode ser evitado simplesmente recusando acreditar nele. Que os perseguidos e desfavorecidos têm queixas face aos privilegiados — amplamente dado como certo hoje em todo o Ocidente — não é remotamente uma verdade evidente. As condenações do Cristianismo como patriarcal, ou repressivo, ou hegemónico decorrem de um conjunto de valores que em si próprios não são nada se não forem Cristãos.
A familiaridade com a história da Páscoa dessensibilizou-nos face ao que Paulo e Nietzsche, de duas formas muito diferentes, reconheceram instintivamente naquela: um escândalo. A cruz, a ferramenta antiga do poder imperial, permanece o que sempre foi: o símbolo apropriado de uma transfiguração na história da humanidade tão profunda e vasta como qualquer outra na história. ‘O que há de fraco no mundo é que Deus escolheu para confundir o que é forte.’ É a audácia – a audácia de descobrir num cadáver torcido e derrotado a glória do criador do universo – que serve para explicar, com mais certeza do que qualquer outra coisa, a completa estranheza do Cristianismo e da civilização à qual deu origem.
Hoje, o poder desta estranheza perene está tão vivo como sempre esteve. É manifesto no aumento das conversões que varreram a África e a Ásia no último século; na convicção de milhões e milhões de que o poder do Espírito, como um fogo vivo, ainda arde no mundo; e, na Europa e na América do Norte, nas convicções de muitos mais milhões que nunca pensariam em descrever-se a si próprios como Cristãos. Somos todos herdeiros da mesma revolução: uma revolução que tem, no seu cerne, a imagem de um Deus morto, depois de ser torturado.
"Thank God for western values" Tom Holland in The Spectator
Tradução Carlota Cambournac